segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Francesco, o filho de Pietro Bernardone continua vivo

Quando outubro chega outra vez
 
E depois que o Senhor me deu irmãos, ninguém me mostrou o que eu devia fazer, mas o Altíssimo mesmo me revelou que eu devia viver segundo a forma do Santo Evangelho  (Testamento 14).

1. Sim, Francesco, o filho de Pietro Bernadorne, queria viver evangelicamente.  Nada mais, nada menos. Uma vez mais chega o mês de outubro e diante de nossos olhos se desenha a figura desse Francesco, filho de Pietro Bernardone. O que foi acontecendo com esse filho de Pietro Bernardone?  Celebramos a 4 de outubro o dia desse Francesco que invadiu nossa vida com alegria e vigor: seu trânsito glorioso, a missa solene, a bênção dos animais e as exortações sobre a preservação do meio ambiente, desta casa de todos nós que anda seriamente em perigo.  Mas, sobretudo, alguém que, nos anos verdes de nossa vida, nos fascinou. Alguma coisa precisa permanecer em nós depois de passados os festejos de outubro.  O espírito de Francisco não morre. Não queremos ser coniventes com uma mentalidade que transforma Francisco apenas em alguma coisa adocicada e  folclórica: passarinhos, água caindo em cascata, capuz na cabeça, um frade rolando pela neve e pronto. Nesta reflexão, feita no momento em que estamos entrando em outubro, queremos simplesmente lembrar três ou quatro coisas que marcaram a trajetória do filho de Pietro Bernadone. Ele continua vivendo entre nós através de seu espírito e de seus inumeráveis discípulos que costumam ser simplesmente designados de franciscanos. Qualquer coisa nos diz que, com modéstia e simplicidade, somos convidados a conservar viva a memória do Evangelho através de nossa presença e de nossa palavra de frades menores. Esta a razão de ser do movimento franciscano no mundo e na Igreja.
2. “Francisco de Assis não foi de início um modelo de doçura. Suas ambições o haviam atirado à guerra: a guerra voluntária como caminho para a glória. Mas ele encontrou  Cristo e, finalmente, se o universo se transfigurou aos seus olhos, foi porque seu coração se abriu à grande doçura de Deus. Francisco soube domesticar sua própria agressividade. Converteu o lobo, aquele lobo que não vive apenas nas florestas, mas que se oculta em cada um de nós.  E o lobo feroz se tornou fraternal. Aquela força de combate e de crueldade metamorfoseou-se numa energia de amor, numa força criadora de comunhão entre os seres” (E. Leclerc. O sol nasce em Assis,  Vozes, p. 95).  Francisco tem a doçura de Deus.
3. Francisco é alguém que leva a sério o Evangelho. Se pudéssemos resumir numa palavra a vida desse Francesco, talvez fosse suficiente dizer isto: que ele é alguém que leva a sério o Evangelho. Pode-se mesmo dizer que se tornou um Evangelho vivo, boa nova viva com seus posicionamentos e suas atitudes. Reescreveu o Evangelho em sua carne. No fim de sua vida tinha no corpo as chagas doídas e gloriosas do Cristo Jesus. Numa época como a nossa em que a fé talvez se tenha tornado muito fragilizada, em que a pastoral parece ter perdido seu fogo e se revestido de burocracia, esse Francesco d’Assisi se nos apresenta como aquele que quer tão somente o Evangelho. O Evangelho para ele, no entanto, não é um texto morto, mas Alguém, esse Jesus, que salta das páginas escritas e inflama o coração. Por isso não se pode fazer glosas ao Evangelho.
4. Tem-se a impressão que, nos albores de sua vocação, Francisco andava literalmente à procura de um  tesouro. Ele sente um apelo para fugir de toda mediocridade. Gosto da maneira como Michel Hubaut fala do encontro de Francisco com o Evangelho: “O evangelho feriu a Francisco como o bisturi do cirurgião. A tranquila homilia que atormentava  a assembleia dominical se converteu para ele num evangelho de fogo. A fé é o contrário do medo. E com isso Francisco queria arriscar tudo: renunciar ao desejo de manipular ou manejar sua vida, os dons que havia recebido e entrar no projeto de Deus a seu respeito. Aposta na fé. Não se pode compreender nada de Francisco se não entendermos sua conversão como o desejo do homem que se abre ao desejo de Deus (cf. El camino franciscano, Verbo Divino [Navarra] 1984, p. 19).  Mais ainda:  “Na vida de Francisco,  Deus não tem um espaço reservado apenas no culto semanal. Invadiu todo o seu espaço e seu tempo de homem. E isso significa crer.  Francisco voltará sempre a esta convicção: guardar a fé. Buscar Deus em todas as partes. Sabe ele muito bem como as coisas, em nosso interior e ao nosso redor,  constituem um obstáculo para essa presença. Crer é fazer cair incontáveis barreiras, não poucas vendas dos olhos para que atrevamo-nos a colocar um ato de confiança que nos oriente incondicionalmente a uma chamada que vem de outro lugar” (p. 19-20).  Penso que a força da frase precedente está na resposta incondicional. Esta a base do chamamento de Francisco. Este o fundamento do viver dos franciscanos: agarrar o projeto do Evangelho e acreditar num amanhã que será rasgado para nós e nossa fraternidade. Quando nossos frades fazem sua profissão solene estão dizendo: “Tu estás comigo. Meu futuro não é meu futuro. Mas o futuro que tu me mostras. Dá-me a singeleza de uma criança e que eu não largue  minha mão de Tua mão. Dá-me viver minha promessa na casa de irmãos transparentes”. Que futuro o Senhor está mostrando aos frades da Imaculada?
5. Sentimos hoje mais do que nunca que precisamos com urgência voltar ao Evangelho. O tema parece gasto.  Não há, no entanto, outra saída para um certo mal-estar do mundo, da Igreja e para nossas fraternidades franciscanas. Apesar de todo o progresso, de uma melhor distribuição de rendas e de tantos avanços,  continuam a  existir miseráveis  em todos cantos: nas favelas, nos barcos de refugiados que chegam aos países mais desenvolvidos da Europa, nesses seres que morrem e matam, nos jovens drogados, despedaçados, quebrados. As pessoas não são felizes e vivem um sentimento de insatisfação.  O ser humano parece perdido e a humanidade dá a impressão de regredir. Quantas vezes nós mesmos, sem angústias neuróticas, em momentos de verdade, queremos também começar tudo de novo e, quem sabe, de uma outra maneira. 
6. Voltar ao Evangelho não é apenas ler as páginas de um texto e citar pensamentos do Novo Testamento. Para Francisco, o Evangelho é uma pessoa. “O coração da espiritualidade de Francisco:  a fé vigilante. Para além das ideologias, dos anunciadores de desgraças, dos slogans publicitários a respeito da felicidade, permanecer  disponível ao chamado de Deus, ao Espírito do Senhor. Iluminar novamente nossas fontes interiores. Escutar Deus. Buscar a Deus. Deixar-se amar e modelar por Deus. Deixar-se conduzir de novo no meio da noite pela esperança que ganhou rosto em Jesus Cristo. Despertar desta sonolência espiritual que fez nosso mundo ocidental adormecer em meio à abundância. O projeto evangélico de São Francisco se enraíza na fé”  (p. 20-21).
7. Quando se fala de Francisco  não se pode deixar de evocar o encontro com o leproso. “Todas as aventuras humanas começam por uma experiência fundante. A experiência fundadora do movimento franciscano está vinculada aos leprosos. Servindo e cuidando dos leprosos é que Francisco fez a experiência de Deus e da felicidade, experiência que ele mesmo, no Testamento, descreve como passagem do amargo para o doce. Foi ali que compreendeu que ele não podia ser conivente com mau caminho que a comuna de Assis havia encetado,  baseada na apropriação e acumulação de bens materiais, sem atenção para com  esses que constituíam uma minoria subjugada. Foi ali que Francisco descobriu que devia mudar e voltar ao Evangelho, à boa nova proclamada aos pobres. A experiência fundadora de Francisco consistia na tomada de consciência que existiam irmãos e irmãs humanos, excluídos, entregues à própria sorte,  que isso não era justo, que isso nada tinha de equitativo, que Deus se importava com o fato,  e que lá era o lugar de Deus.  Para os primeiros franciscanos, construir uma vida segundo o Evangelho não queria dizer fugir para longe,  mas oferecer uma sociedade alternativa  fundada sobre a economia evangélica do serviço e da partilha,  ali, nas portas de Assis, na terra de Deus. Do mesmo modo que os primeiros cristãos que ameaçam a ordem do império romano, os primeiros irmãos e irmãs que seguiram Francisco ameaçavam pacificamente e sem violência a recentíssima democracia de Assis:  Ninguém me disse o que eu devia fazer, escreveu Francisco em seu Testamento, mas ele compreendeu que Deus queria que ele vivesse segundo o Evangelho, graças a Deus, esta declaração  “herética” esteve na origem de um movimento que  está ainda em pleno vigor” (Jean-François Godet-Calogeras, Retour aux sources, in Evangile Aujourd’hui, n. 226, p. 44-45).
8. Os frades de ontem e de hoje, homens do evangelho, são também pessoas abertas ao Espírito. O novo que se pede não nasce de relatórios e de pesquisas e estatísticas, mas de frades que se deixam guiar pelo Espírito do Senhor. O Poverello exorta os frades a não perderem esse espírito do Senhor. Os comentaristas dizem que no contexto da Regra bulada Francisco pensava no espírito de Cristo. Vale transcrever o texto e o contexto: “Admoesto, no entanto, e exorto no Senhor Jesus Cristo a que os irmãos se acautelem de toda soberba, vangloria, inveja, avareza, cuidado e solicitude deste mundo, detração e murmuração; e os que  não sabem ler não se preocupem em aprender, mas atendam a que, acima de tudo,  devem desejar possuir o espírito do Senhor e seu santo modo de operar” (Regra Bulada X).
9. A redescoberta do Evangelho pode fazer a terra arder.  Esse Espírito do Senhor é que age na história.“Aconteceu muitas vezes que os cristãos, fechados numa falsa interioridade ou presos às estruturas do passado, não souberam discernir os apelos do Espírito nas forças vivas que agem na história dos homens, para grande prejuízo da Igreja e da sociedade. A Igreja só pode renovar-se em contato com as aspirações profundas dos homens. Este é o lugar onde se opera uma nova leitura do Evangelho. Da mesma forma, os anseios e buscas da sociedade ganham sua dimensão totalmente humana à luz dessa leitura renovada. O que dá força e irradiação à figura de Francisco é  o fato de ter realizado o encontro do Evangelho com a história. E uma vez mais pôde fazer a terra arder” (Eloi Leclerc, Francisco de Assis. O retorno ao evangelho, Vozes, p. 127).
10. Francisco tem uma atitude de busca da verdade.  Quer a verdade  de Deus, dos outros e a própria verdade. Não quer aparência. Por isso busca a vontade de Deus. Famosa a frase: “O que queres de mim?” Verdade da vida de oração e da vida fraterna, verdade na prática pastoral e verdade no trato com os irmãos, verdade a respeito dos irmãos e da administração. Verdade, misturada com misericórdia. Mas uma vida verdadeiramente evangélica, sem mentiras e acomodações medíocres, sem fachada, sem duplicidade. Uma vida verdadeira.
11. Francisco é o despojado. Despoja-se dos bens, do orgulho, da auto-suficiência, do narcisismo, do carreirismo. Começa por despojar-se de todos os bens.  Esse despojamento era necessário. André Vauchez, um dos mais conhecidos medievalistas ainda vivos, recentemente escreveu uma biografia sobre Francisco de Assis. Falando do despojamento dos bens: “De todos os que vinham seguir o gênero de vida do começo, Francisco exigia que vendessem seus bens e distribuíssem em seguida o dinheiro aos pobres.  Numa sociedade em que os direitos do individuo contavam menos do que os interesses da linhagem não era fácil para alguém que possuía desfazer de seus bens, porque devia obter o acordo com todos os possuidores e reembolsá-los de sua parte na hora de uma eventual venda. Assim, quase a cada vez, o ingresso na fraternidade dos irmãos de Francisco provocava com o que um traumatismo social e fazia nascer na opinião pública reações que iam da mau humor à hostilidade declarada diante desse punhado de loucos que perturbavam o jogo normal da partilha senhorial e as estratégias do clã familiar” (François d’Assise, A. Vauchez, Fayard, 2009, p. 85). Importante a venda dos bens e a distribuição do dinheiro aos pobres.  Consequência disso: há também o despojamento do orgulho, da suficiência, do narcisismo.  Uma vida evangélica.
12. Francisco entra num serviço minorítico e fraterno.  Abandona a dominação e o poder. Imita o Cristo servidor. Tudo começa com a alegria de estar junto das pessoas simples, de modo especial dos leprosos. Uma fraternidade de menores! Éloi Leclerc fala do tipo de fraternidade evangélica inventada por Francisco: “Uma fraternidade evangélica não pode ser simplesmente uma comunidade de pobres voluntários, que cultivam a pobreza como uma virtude. Num universo fechado, desligado do mundo e da história. Deve também ser uma fraternidade com os pequenos e os pobres, partilhar de suas condições de vida e de suas aspirações, a fim de que a voz profunda do mundo, suspirando por uma comunidade mais justa e mais fraterna, ressoe no coração da esperança do Reino. Os primeiros frades menores aparecem verdadeiramente como mensageiros da Boa Nova tentando viver em fraternidade com os mais humildes e mais carentes”  (E. Leclerc,  Francisco de Assis. O Retorno ao Evangelho, Vozes, CEFEPAL,  p. 63).
13. Nada de fraternidade sem arestas. Os biógrafos de Francisco afirmam que aos poucos ele também compreendeu que deveria viver uma fraternidade aberta mesmo com aqueles que não haviam compreendido seu projeto e talvez não o vivessem. Numa de suas últimas obras, já citada anteriormente  (O sol nasce em Assis), o mesmo Éloi Leclerc  escreve com extrema justeza: “A comunhão  com os irmãos, com todos os irmãos, eis o que é primordial e que devemos salvar antes de tudo. A separação é o pior que pode acontecer. Colocando a comunhão fraterna acima de tudo, Francisco salvava seu carisma e, ao mesmo tempo, a instituição (...).  Não se trata de sonhar com uma fraternidade ou uma Igreja de pessoas puras, mas aceitar viver com os irmãos, com todos os irmãos. Não só com os justos, mas também com os medíocres e pecadores. Não só com os sadios, mas também com os doentes e com estropiados... E no meio de todos, trata-se de testemunhar a infinita paciência de Deus, seu inesgotável perdão e sua graça sempre renovada. Pois este é verdadeiramente o coração de Deus. Quando se dá este testemunho, então começa aqui e agora o Reino de Deus: a luz do Evangelho brilha na obscuridade do mundo” (O sol..., op.cit., p. 70-71).
14. Jean-François Godet, frade menor, professor na Universidade Saint Bonaventure de Nova York,  já mencionado: “O espírito do Evangelho não morre. Nos últimos decênios vimos emergir uma busca de vida evangélica.  De um lado isso se deveu às inspirações do Concílio do Vaticano II no sentido de que as comunidades voltassem ao espírito de seus fundadores e não se identificassem simplesmente como auxiliares do clero. Mudar estruturas e mentalidades hoje parece difícil. Será preciso fazer transformações na maneira como as pessoas vivem juntas e como se tratam mutuamente. O espírito do Evangelho engendra uma nova conduta política, social e econômica. Os primeiros franciscanos podiam  se servir da linguagem da vida evangélica com honestidade porque todo seu comportamento, toda sua atividade era fortemente marcado pelo Evangelho. Quando falamos hoje de vida evangélica, talvez antes de  servirmo-nos das palavras do Evangelho deveríamos agir concreta e intensamente para o surgimento de um mundo de irmãos e de irmãs que possam partilhar os bens de Deus. Isso quer dizer, por exemplo, que devemos nos certificar que todos os seres humanos tenham acesso à comida e à moradia, à educação e aos cuidados médicos, a um trabalho decente e a um salário digno. Isto significa  trabalhar junto com os que batalham por um mundo de nações verdadeiramente unidas.  Isto quererá dizer que tomemos posição contra tudo o que exclui e fere outros seres humanos.” (op.cit., p. 47-48).
15. Vamos terminando.  A festa de São Francisco não pode ser um dia que passa e nada mais. Ela deve poder marcar nossas vidas. Precisa colocar dentro de nós uma saudade daquele tempo em que resolvemos vender tudo e seguir Francisco.  Temos vontade de pedir aos céus e ao Francisco da glória que volte a esta terra. “Voou para o Alto? Não voltará? Volta de novo à terra, ó Pai São Francisco. Andaste no trabalho ingente e doloroso de arredar os espinhos que escondem  no coração do mundo o Reino dos céus;  chagaste no trabalho os teus pés e mãos, teu peito estalou de cansaço num rasgão sangrento. E já os lobos amansavam suas gulas e sanhas, e as andorinhas andavam presas no encanto de tua voz, e os homens deixavam os campos de batalha para correr atrás de ti, em convívio fraterno, e até os infiéis, enternecidos escutavam os teus cantares de Paz e Bem. Parece que já nos sorria o paraíso.  Mas foste embora naquela madrugada de luz que  num instante fulgiu nos negrumes da terra, e logo se apagou.  E foi outra vez a noite do pecado.  Há  mais espinhos sobre a crosta da terra; anda à solta, mais açulados e gulosos, os lobos que nos espreitam; fugiram aterradas as andorinhas;  e as irmãs cotovias, tristes encapuchadas, vivem numa saudade imensa daquela madrugada que não chegou a amanhecer. Volta, pai  São Francisco, ao teu trabalho de encher a terra da paz do Reino de Deus!  Mas se não voltas, então espera-me, ó Pai, que também me quero partir contigo” (Fernando Felix Lopes, O Poverello. S. Francisco de Assis,  Ed.  Franciscana  Braga,  1950, p. 493-494).

E ordeno firmemente por obediência a todos os meus irmãos, clérigos e leigos, que não introduzam glosas na Regra, nem nestas palavras dizendo: assim devem ser entendidas, mas como o Senhor me concedeu de modo simples e claro, dizer e escrever a Regra e estas palavras, igualmente de modo simples e sem glosa, as entendais com santa operação e as observeis até o fim (Testamento 38-39).

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