sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Impressão das chagas de São Francisco de Assis



INTRODUÇÃO

No dia 17 de setembro a Família Franciscana celebra, em todo o mundo, a festa da impressão das Chagas, também chamada de Estigmas de São Francisco de Assis. A introdução litúrgica da Missa e Liturgia das Horas diz o seguinte:
"O Seráfico Pai Francisco, desde o início de sua conversão, dedicou-se de uma maneira toda especial à devoção e veneração do Cristo crucificado, devoção que até a morte ele inculcava a todos por palavras e exemplo. Quando, em 1224, Francisco se abismava em profunda contemplação no Monte Alverne, por um admirável e estupendo prodígio, o Senhor Jesus imprimiu-lhe no corpo as chagas de sua paixão. O Papa Bento XI concedeu à Ordem dos Frades Menores que todos os anos, neste dia, celebrasse, no grau de festa, a memória de tão memorável prodígio, comprovado pelos mais fidedignos testemunhos.


O TESTEMUNHO DAS FONTS FRANCISCANAS
Dos "Fioretti" - Terceira consideração dos Sacrossantos Estigmas
"Um dia, no princípio de sua conversão, ele rezava na solidão e, arrebatado por seu fervor, estava totalmente absorto em Deus e lhe apareceu o Cristo Crucificado. Com esta visão, sua alma se comoveu e a lembrança da Paixão de Cristo penetrou nele tão profundamente que, a partir deste momento, era-lhe quase impossível reprimir o pranto e suspiros quando começava a pensar no Crucificado".
E rezava:
"Ó Senhor, meu Jesus Cristo, duas graças eu te peço que me faças, antes de eu morrer: a primeira é que, em vida, eu sinta na alma e no corpo, tanto quanto possível, aquelas dores que tu, doce Jesus, suportaste na hora da tua dolorosa Paixão.
A segunda, é que eu sinta, no meu coração, tanto quanto for possível, aquele excessivo amor, do qual tu, filho de Deus, estavas inflamado, para voluntariamente suportar uma tal Paixão por nós pecadores".
Da Legenda Menor de São Boaventura, Capítulo 6
"Francisco era um fiel servidor de Cristo. Dois anos antes de sua morte, havendo iniciado um retiro de Quaresma em honra de São Miguel num monte muito alto chamado Alverne, sentiu com maior abundância do que nunca a suavidade da contemplação celeste. Transportado até Deus num fogo de amor seráfico, e transformado por uma profunda compaixão n'Aquele que, em seus extremos de amor, quis ser crucificado, orava certa manhã numa das partes do monte.
Aproximava-se a festa da Exaltação da Santa Cruz, quando ele viu descer do alto do céu, um serafim de seis asas flamejantes, o qual, num rápido vôo, chegou perto do lugar onde estava o homem de Deus. O personagem apareceu-lhe não apenas munido de asas, mas também crucificado, mãos e pés estendidos e atados a uma cruz. Duas asas elevaram-se por cima de sua cabeça, duas outras estavam abertas para o vôo, e as duas últimas cobriam-lhe o corpo.
Tal aparição deixou Francisco mergulhado num profundo êxtase, enquanto em sua alma se mesclavam a tristeza e a alegria: uma alegria transbordante ao contemplar a Cristo que se lhe manifestava de uma maneira tão milagrosa e familiar, mas ao mesmo tempo uma dor imensa, pois a visão da cruz transpassava sua alma como uma espada de dor e de compaixão.
Aquele que assim externamente aparecia o iluminava também internamente. Francisco compreendeu então que os sofrimentos da paixão de modo algum podem atingir um serafim que é um espírito imortal. Mas essa visão lhe fora concedida para lhe ensinar que não era o martírio do corpo, mas o amor a incendiar sua alma que deveria transformá-lo, tornando-o semelhante a Jesus crucificado.
Após uma conversação familiar, que nunca foi revelada aos outros, desapareceu aquela visão, deixando-lhe o coração inflamado de um ardor seráfico e imprimindo-lhe na carne a semelhança externa com o Crucificado, como a marca de um sinete deixado na cera que o calor do fogo faz derreter.
Logo começaram a aparecer em suas mãos e pés as marcas dos cravos. Via-se a cabeça desses cravos na palma da mão e no dorso dos pés; a ponta saía do outro lado. O lado direito estava marcado com uma chaga vermelha, feita por lança; da ferida corria abundante sangue. Frequentemente, molhando as roupas internas e a túnica. Fui informado disso por pessoas que viram os estigmas com os próprios olhos.
Os irmãos encarregados de lavar suas roupas, constataram com toda segurança que o servo de Deus trazia, em seu lado bem como nas mãos e pés, a marca real de sua semelhança com o Crucificado".
Tomás de Celano - Vida II, 211
"Francisco já tinha morrido para o mundo, mas Cristo estava vivo nele. As delícias do mundo eram uma cruz para ele, porque levava a cruz enraizada em seu coração. Por isso fulgiam exteriormente em sua carne os estigmas, cuja raiz tinha penetrado profundamente em seu coração".
Outros textos: 1Cel, 94; Legenda Maior, 13,35,69.

 
O SENTIDO E O SIGNIFICADO DAS CHAGAS DE SÃO FRANCISCO
Frei Régis G. Ribeiro Daher
Mais do que desvendar o caráter histórico das Chagas de São Francisco, importa refletir sobre a experiência de vida que se esconde sobre este fato. O que significa a expressão de Celano "levava a cruz enraizada em seu coração"? O que isso significou para o próprio Francisco? Há um significado para nós hoje, naquilo que com ele ocorreu?
Um erro comum é o de ver São Francisco como uma figura acabada, pronta, sem olhar para a caminhada que ele fez até chegar à semelhança perfeita (configuração) com o Cristo. O que ocorreu no Monte Alverne é o cume de toda uma vida, de uma busca incessante de Francisco em "seguir as pegadas de Jesus Cristo". Francisco lançou-se numa aventura, sem tréguas, na qual deu tudo de si: a vontade, a inteligência e o amor. As chagas significam que Deus é Senhor de sua vida. Deus encontrou nele a plena abertura e a máxima liberdade para sua presença.
O segundo significado das chagas é o de que Deus não é alienação para o ser humano, ao contrário, é sua plena realização e salvação. Colocando-se como centro da própria vida é que o homem se aliena e se destrói; torna-se absurdo para si mesmo no fechamento do seu 'ego'. O homem só encontra sua verdadeira identidade, sua própria consistência e o sentido de sua existência em Deus. E Francisco fez esta descoberta: Jesus Cristo foi crucificado em razão de seu amor pela humanidade - "amou-os até o fim" - , e ele percorre este mesmo caminho.
O terceiro significado: as chagas expressam que a vivência concreta do amor deixa marcas. A exemplo de Cristo, Francisco quis suportar/carregar e amar os irmãos para além do bem e do mal (amor incondicional). Essa atitude o levou a respeitar e acolher o 'negativo' dos outros mantendo a fraternidade apesar das divisões. Esse acolher e integrar o negativo da vida é a única forma de vencer o 'diabólico', rompendo com o farisaísmo e a autosuficiência, aniquilando o mal na própria carne. Só assim, o homem é de fato livre, porque não apenas suporta, mas ama e abraça o negativo que está em si e nos outros.
O quarto significado: seguir o Cristo implica em morrer um pouco a cada dia: "Quem quiser ser meu discípulo, tome a sua cruz a cada dia e me siga" (Lc 9,23). Não vivemos num mundo que queremos, mas naquele que nos é imposto. Não fazemos tudo o que desejamos, mas aquilo que é possível e permitido. Somos chamados a viver alegremente mesmo com aquilo que nos incomoda, vencendo-se a si mesmo e integrando o 'negativo', de modo que ele seja superado. Nós seremos nós mesmos na mesma medida em que formos capazes de assumir nossa cruz. As chagas de São Francisco são as chagas de Cristo, e elas nos desafiam: ninguém pode conservar-se neutro, sem resposta diante da vida.
São Francisco não contentou-se em unicamente seguir o Cristo. No seu encantamento com a pessoa do Filho de Deus, assemelhou-se e configurou-se com Ele. Este seu modo de viver está expresso na "perfeita alegria", tema central da espiritualidade franciscana: "Acima de todos os dons e graças do Espírito Santo, está o de vencer-se a si mesmo, porque dos todos outros dons não podemos nos gloriar, mas na cruz da tribulação de cada sofrimento nós podemos nos gloriar porque isso é nosso".


AS CHAGAS DE SÃO FRANCISCO: QUE MILAGRE É ESTE?
Frei Hipólito Martendal
Há vários santos entre os católicos que apareceram portando estigmas, semelhantes às chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo. Ultimamente parece que tivemos até um caso raro de um homem de Deus trazer por certo tempo as chagas e depois elas virem a desaparecer. Dizem que isto teria acontecido com o capuchinho de nossos dias, o Pe. Pio, agora São Pio.
Por outro lado, estamos por demais acostumados com a idéia de milagres como eventos extraordinários, operados instantaneamente, ou pelo menos, em tempo relativamente breve, onde as coisas acontecem de tal maneira que só podem ser atribuídas a alguma intervenção divina.
De minha parte, acredito que verdadeiros milagres podem ocorrer sem todos estes atributos considerados seus sinais inconfundíveis. Posso imaginar verdadeiros milagres sendo gerados aos poucos, lentamente, com recurso às forças naturais, mas que nunca poderiam acontecer somente apela atuação destas forças.
No caso de São Francisco, por exemplo, as descrições de seus biógrafos são espetaculares. O Santo, durante uma quaresma que celebrou em honra de São Miguel Arcanjo, na véspera, ou no dia da festa da Exaltação da Santa Cruz (14 de setembro), mergulhado em profunda meditação sobre a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, tem uma visão deveras impressionante. Cristo lhe aparece como um homem crucificado, mas portando três pares de asas de Serafim. Francisco é arrebatado por um êxtase total. Aos poucos, sem ele sentir, as chagas de Jesus criam forma e implantam-se em seus membros e lado. Tomás de Celano, São Boaventura e o autor dos Fioretti descrevem-nas, bem como seu formato, a cor e a aparência dos cravos, em tudo de maneira muito semelhante.
O primeiro santo das chagas
Há algumas particularidades muito interessantes no caso de São Francisco. Ele é o primeiro homem na História a aparecer chagado. As descrições são concordes ao destacar o tamanho das feridas (eram grandes), estruturas semelhantes a cravos, com sangramentos intermitentes, principalmente na ferida do lado.
Outra característica muito forte em São Francisco era o destaque que dava à humanidade de Jesus. O último Natal, antes das Chagas, ele o celebrara em Greccio, quando pedira a um amigo que montasse a cena de Belém o mais semelhante possível ao que ele concebera, em sua imaginação poética, pois, dizia: "Quero lembrar a criança que nasceu em Belém e ver com meus olhos carnais as dificuldades de sua infância pobre, como ele dormiu na manjedoura e como, entre o boi e o burro, deitaram-no sobre o feno". (São Francisco de Assis de Jacques Lê Goff, p.88).
Na quaresma em que foi agraciado com os sagrados estigmas, o assunto de meditações e contemplações fora a Paixão do Senhor. Por outro lado, quando se tratava de virtudes relacionadas à renúncia, à minoridade, à pobreza, ao servir, Francisco fazia questão de ser sempre o primeiro em tudo. O mesmo acontecia no desejo de imitar Nosso Senhor, no que se refere à pobreza e ao sofrimento. Queria ser o primeiro entre todos que desejasse viver como o Divino Mestre vivera. Além do mais, São Francisco era do tipo sensitivo, muito intuitivo, dado a sonhos e visões freqüentes, coisas que ele interpretava realisticamente como repostas divinas à sua incessante procura de Deus e da perfeição.
Agora vamos ao essencial que desejo oferecer à meditação do leitor. Em nossos dias, os estudos que procuram as conexões entre o que é mental e o que é corporal, entre o espiritual e o material, progrediram muito e têm descoberto coisas realmente interessantes. Os estudiosos afirmam que cerca de 80% dos transtornos físicos que incomodam o ser humano são de origem psíquica. Um desejo muito forte, uma emoção avassaladora, uma necessidade premente podem converter-se em sintomas físicos e doenças.
Dias atrás lia o caso de uma mulher que sofria de dores de cabeça lancinantes e contínuas e para a qual um batalhão dos melhores médicos não encontrava qualquer causa orgânica que explicasse. Só sabiam que depois de muitos anos de sofrimentos na companhia de um marido alcoólico e muito violento, conseguira a separação. Ele ameaçara suicidar-se, caso ela não voltasse. Ela não voltara e ele dera um tiro na própria cabeça!
Cópia perfeita de Cristo
Ora, fomos condicionados a ver somatizações só em doenças. E por que o fenômeno não poderia ocorrer como resposta sadia a desejos e emoções elevados e santos? Eu imagino que no caso de São Francisco tenha ocorrido exatamente tal fenômeno. Ele tinha uma capacidade rara de exprimir fisicamente seus estados de alma. Declamava, cantava, dançava, e encenava as alegrias mais espirituais. Vertia abundantes lágrimas de tristeza ao contemplar os sofrimentos de nosso Divino Mestre, ou simplesmente por pensar que "o Amor não é amado". Estava firmemente disposto a não sofrer menos que sofrera seu Mestre e Senhor. Nos últimos anos de vida tivera ainda que contatar a realidade decepcionante de ver seus frades envolvidos em graves divisões e querelas por causa de seus próprios ideais de pobreza e minoridade, coisas que ele considerava revelações divinas e inquestionáveis. Isto constituía seu calvário que o aproximava ainda mais de Cristo.
Então, o milagre se deu, não por uma intervenção direta e violenta do sobrenatural em seu corpo, mas por um mimetismo divino, por uma somatização de seus desejos santos de ser como o Divino Mestre a quem ele queria copiar. E a cópia foi tão perfeita, que seus contemporâneos registraram para as gerações futuras que "São Francisco é outro Cristo".
"O Senhor fez em mim maravilhas, santo é seu nome. A minha alma engrandece o Senhor, exulta meu esp...."

O SERAFIM DO AMOR
Realizei alguns retiros no Monte Alverne, na região da Toscana, onde Francisco vivenciou os estigmas. Lá, encontrei um monge budista. Quando perguntei o seu nome, ele respondeu: "Eu não tenho nome. Chamamos este lugar de encontro. Quero que você me chame Francisco".
As boas fontes franciscanas dizem que, de repente, Deus tocou profundamente Francisco. Ele é um imitador perfeito dos caminhos do Senhor Jesus, e todo aquele que é marcado pelos dedos terríveis desse amor, a ele é impossível não trazer essas marcas em seu corpo. Teologicamente, espiritualmente, dizemos que o anjo, o Serafim alado, veio e marcou o corpo dele com aquelas chagas do Amado. E para sempre o amor tomou forma num corpo. Porque o amor estava no seu coração, e o que está no coração toma conta do corpo, da história, da vida e deixa marcas profundas.
As pessoas que se amam verdadeiramente vão ficando parecidas, não é mesmo? Às vezes observamos que, quanto mais velhos ficam nossos pais, mais se assemelham fisicamente. Naquele retiro eu queria entender o que significavam as chagas de Francisco. O monge me respondeu que, de acordo com sua cultura oriental, todas as nossas energias, o nosso potencial de amor, a nossa fonte do amor, brotam de dentro para fora, e não de fora para dentro. Ele disse que, em sua grande capacidade de amar, Francisco explodiu, seu coração se fez como o Sagrado Coração. O coração de quem ama muito faz assim: Pluf! Salta para fora. E o coração dele abriu-se em chagas, em estigmas. Enraizado naquela terra, naquele chão que ele conhecia e pisava, seus pés ficaram marcados com as chagas do Amor.
A concretude do amor estava nas suas mãos, nos seus pés. É nas extremidades vitais que circulam as energias mais poderosas. E foi aí que o amor transbordou na vida de Francisco. Penso que, quando amamos profundamente, todas as experiências humanas e religiosas nos marcam com as marcas profundas do amor. Quem dá o coração, recebe corações. Isso eu aprendi com Francisco, com o cristianismo e também com o budismo. Eu tenho um mestre taoísta, Chuang Tzu. Eu o leio com a mesma paixão que leio o Evangelho, com a mesma paixão com que leio as fontes franciscanas.
Do texto "Dançar o Amor", de Frei Vitório Mazzuco F°.


CARTA ENCÍCLICA POR OCASIÃO DOS 750 ANOS DESDE A ESTIGMATIZAÇÃO DE SÃO FRANCISCO NO ALVERNE
Frei Constantino Koser, OFM
A LIÇÃO DO ALVERNE
1. "Levava a cruz enraizada em seu coração. Por isso fulgiam exteriormente em sua carne os estigmas, cuja raiz tinha penetrado profundamente em seu coração". (1). Estas palavras de Tomás de Celano são das coisas mais profundas e mais verdadeiras que se possam dizer a respeito do fato singular das Chagas de Cristo impressas na carne de nosso Pai São Francisco. Estamos terminando a comemoração dos 750 anos desde que a estigmatização se produziu no alto do Alverne. Para nós, que por vocação e profissão estamos apostados na imitação de nosso Pai, este fato é um desafio constante, de fazer a Cruz lançar raízes cada vez mais profundas em nossa alma.
2. O ano jubilar das Chagas de São Francisco viu muitos franciscanos em peregrinação meditativa no alto do nosso monte santo. Muito mais numerosos os que, espalhados pelo mundo e sem poderem chegar até ali, se esforçaram mais que de costume nesta meditação e fizeram os seus projetos de nova e maior fidelidade à nossa "forma vitae". Penso, no entanto, que, embora tenham sido tantas as reflexões e os propósitos, não é demais que vos diga ainda uma palavra agora ao findar a comemoração especial. Meu propósito fora de escrever esta carta no começo do ano jubilar. Não consegui ultimá-la, embora tivesse começado o trabalho. Várias vezes voltei ao esboço, e não consegui terminar. Razões externas me impediram como que fisicamente de chegar antes ao termo com meu propósito. Pode ser que não seja importante que vos fale; no entanto, ainda assim, com humildade, quero falar. Fazei-o calar em vossa alma e florescer em vossa vida com humildade também.
I. O DESAFIO DAS CHAGAS DE SÃO FRANCISCO
3. UM SINAL. As Chagas de São Francisco são uma realidade que possui a sua densidade própria, e são sinal que significa uma realidade ainda mais densa. Possui seu sentido para São Francisco ele mesmo, e o possui para outros, para nós particularmente, que somos seguidores do santo de Assis. Homens que somos, só podemos atingir as realidades espirituais por intermédio de sinais sensíveis: pelos sinais da linguagem falada, ou pelos sinais-coisas que significam pelo que são, ou significam por sentidos adicionais resultantes de convenção e treino de interpretação. A força dum sinal depende do sinal ele mesmo, mas muito mais depende de quem o percebe e interpreta.
4. CRISE DOS SINAIS. A crise em que a Igreja se encontra no momento, e particularmente a crise da vida religiosa, também a franciscana, nasce em boa parte duma perda de força dos sinais sensíveis nesta dimensão interpretativa, infelizmente, os sinais assim debilitados em sua força de significação ou até inteiramente anulados tardam em ser recuperados, nem são substituídos tempestivamente por outros. Para nós homens, porém, vale que ou recuperamos os sinais que perderam a sua força, ou os substituímos por sinais novos, que possuam a força necessária sobre a nossa subjetividade de percepção e de realização, ou então a crise crescerá na sua intensidade destruidora.
5. AS CHAGAS AINDA SÃO SINAL INTENSO. As Chagas de Cristo e a sua realidade impressa nos membros de São Francisco, porém, continuam a possuir uma força imensa de significação, continuam sendo um sinal. Continuam sendo um sinal ao qual se contradiz para a ruína, ou que se integra na própria vida para a ressurreição (Lc 2,34). As Chagas de Cristo, abertas na Cruz e mantidas na ressurreição, possuem sua força significativa imensa e incontornável: ninguém pode conservar-se em neutralidade, sem resposta. As Chagas de São Francisco derivam das de Cristo a sua força significativa. No entanto, possuem também o seu elemento próprio: como fato que todo o arsenal crítico dos que não as querem aceitar não conseguiu eliminar da história dos homens, e como sinal de que a realidade das Chagas de Cristo continua viva na história a ponto de se exprimirem nesta forma forte e surpreendente. A força do sinal continua viva, importa que abramos nossa alma e abramos a alma dos outros para que esta força de significação transformante possa agir.
6. MUITA CRISE, MUITA DÚVIDA, POUCA FORÇA. A crise em que nos encontramos já vem de longe, mas cobrou força enorme em nossos dias. Sua força nas almas provém dum questionamento generalizado. Um questionamento pode ser para a vida, se o seu desafio é assumido e levado até à resposta. Mas gera a morte, quando o desafio não é assumido e as questões levantadas ficam sem resposta: gera a morte através da dúvida, que passa a ser ceticismo e este transforma a vida num cemitério. O questionamento diante do qual nos vimos colocados foi e continua sendo ingente. Infelizmente é grande a medida em que não é assumido com responsabilidade e levado até gerar resposta. São muitos os que se comprazem em questionamento estéril. Assim, em muitas almas nasceu a dúvida, cresceu um sentimento generalizado de reserva, instalou-se não raro um ceticismo progressivo que produz a morte da vida cristã e da vida religiosa. O que importa é assumir responsavelmente o questionamento e caminhar até encontrar a resposta. O Alverne para isto pode ser uma lição fecunda.
7. SÃO FRANCISCO CHAGADO PROVOCA UMA REORIENTAÇÃO. Se com toda a seriedade nos confrontarmos com São Francisco chagado e não fugirmos do seu olhar perscrutador, estaremos já no caminho de assumir responsavelmente o questionamento da crise em que nos debatemos. Se assim nos confrontarmos com ele em medida suficiente, com coragem e decisão, provocará em nós uma reorientação para a vida, a inversão da marcha mortífera da dúvida e do ceticismo.
8. IMPORTA TAMBÉM A INTEGRAÇÃO DO "HOJE". Para que este confronto produza em nós os seus efeitos salutares, porém, importa que nele assumamos e integremos a nossa realidade concreta, a situação em que nos encontramos. O passado com o que fez neste sentido nos pode ajudar validamente, no entanto não basta: importa integrar no confronto também a realidade de hoje. Aceitemos o desafio com seriedade, integridade, honestidade e coragem. Importa que façamos com decisão e coerência a nossa parte.
II. AS CHAGAS DE SÃO FRANCISCO SÃO UM FATO
9. A VOZ DA CRÍTICA HISTÓRICA. Um dos elementos da crise que vivemos é a dúvida a respeito de coisas como a estigmatização acontecida no Alverne. Para que esta tenha a sua força, é preciso vencer a dúvida relativa ao fato. Comecemos aí a recuperação. No fim do século XVIII, apenas nascida, a nova ciência histórica, que se dizia "crítica", negou a estigmatização no Alverne e tentou liqüidar o que a respeito se transmitia. Muitos confrades de então se sentiram profundamente feridos em sua visão da vida de São Francisco, mas tiveram que suportar a tempestade da negação e ridicularização: não possuíam resposta. Nós hoje, acostumados ao método histórico-crítico, não nos assustamos tanto, achamos que é um modo de consideração necessário e estamos na vantagem de que outros, antes de nós, superaram as negações especiosas do que pretendia ser ciência e colocaram à nossa disposição uma certeza criticamente garantida a respeito do que aconteceu. O que sabemos como resultado do exame histórico-crítico dos documentos na realidade é pouco e não possui a dimensão amplíssima do que desejaríamos saber. Mas é suficiente como fundamento de nossas meditações e basta amplamente para que a lição do Alverne para nós tenha consistência e valor. É evidente que nestas páginas não se trata de fazer pesquisa, mas só de recolher os resultados já garantidos para fundamentar a reflexão. E nos limitamos estritamente ao fato das Chagas.
10. CEM ANOS ATRÁS, UM RESUMO NEGATIVO. Carlos Augusto Hase fez um primeiro resumo dos resultados obtidos pela aplicação do método histórico-crítico aos relatos da estigmatização de 1224: com conclusão negativa (3). Achou que tinha o direito e dever de reduzir os documentos autênticos às poucas linhas de Frei Elias na "Epistola encyclica de transitu S. Francisci" (4). Considerou todos os demais documentos como produtos de fantasia, destituídos de valor histórico. Interpretou as poucas linhas de Frei Elias em chave minimizante. Em seguida não encontrou dificuldades em atribuir as Chagas a uma falsificação criminosa, executada no corpo de São Francisco depois da morte precisamente por Frei Elias, caráter capaz - diz Hase - de semelhante monstruosidade.
11. À DISTÂNCIA DE CEM ANOS. O P. Otaviano de Rieden O.F.M. Cap. publicou o seu "De sancti Francisci Assisiensis stigmaturn susceptione disquisitio historico-critica luce testimoniorum saeculi XIII" (5). Este estudo marca o ponto em que as pesquisas se encontram no momento, com resultados bem mais positivos e sérios que os apresentados por Hase. Significa para nós a recuperação dos fatos à luz da história crítica e com as garantias mais elevadas na aplicação rigorosa deste método científico. Claro, não mais que estas garantias, que não são absolutas: são históricas, não metafísicas. Mas, pode-se dizer, garantias de nível máximo dentro da categoria histórica.
12. OS DOCUMENTOS QUE POSSUEM ESTA MEDIDA MÁXIMA DE CERTEZA GARANTIDA são os seguintes: o de Frei Elias, "Epistola encyclica de transitu S. Francisci"' (6); a nota que Frei Leão escreveu na "Chartula, quam dedit fr. Leoni" (7); Tomás de Celano, "Vita prima S. Francisci", ns. 94-95 (8) e ns. 112-113 (9). O que se narra nestes documentos é repetido em muitos outros, com informações suplementares. Para a finalidade desta carta bastam as informações dos três textos mencionados. E possuem, como ficou dito, a força de eliminar qualquer dúvida a respeito do fato da estigmatização.
13. A IMPRESSÃO DAS CHAGAS É UM FATO, que não pode ser posto em dúvida, desde que se respeitem as regras do método histórico-crítico. Começaram a formar-se as cinco Chagas durante ou pouco depois da experiência mística de São Francisco no Alverne em setembro de 1224, dois anos antes de sua morte, na visão do "quasi Seraphim sex alas habentem" (10). São Boaventura dá esta ulterior determinação cronológica: "Quodam mane circa festum Exaltationis S. Crucis". (11) As fontes não permitem maior precisão a respeito do dia. Do modo como estas fontes narram o acontecimento, tem-se a impressão de que as Chagas não se produziram de forma abrupta durante a visão, mas foram se formando aos poucos, sem que se possa saber quanto tempo tenha durado este período de formação. "... coeperunt in manibus eius et pedibus quem admodum paulo ante virum supra se viderat crucifixum..."(12) diz Celano. S. Boaventura também diz: "Statim... apparere coeperunt" (13).
14. A FORMA DAS CHAGAS MERECE ESPECIAL ATENÇÃO. As descrições de Frei Elias e de Tomás de Celano apresentam diferenças que foram interpretadas como contradições. No entanto, lendo as duas descrições sem prevenção e com minuciosa atenção, dir-se-á que não existem contradições e que o texto de Tomás de Celano, longe de contradizer, confirma com explicitações o texto de Frei Elias. É importante ter presente as duas descrições. Frei Elias escreveu: "Manus eius et pedes quasi puncturas clavorum habuerunt, ex utraque parte confixas, reservantes cicatrices et clavorum nigredinem ostendentes. Latus vero eius lanceatum apparuit et saepe sanguinem evaporavit" (14). Tomás de Celano, dois anos mais tarde e à vista de Frei Elias e em vida de muitos que tinham visto as Chagas, relata: "Manus et pedes eius in ipso medio clavis confixae videbantur, clavorum capitibus in interiore parte manuum et superiore pedum apparentibus, et eorum acuminibus exsistentibus ex adverso. Erant enim signa ilia rotunda interius in manibus, exterius autem oblongata, et caruncula quaedam apparebat quasi summita clavorum retorta et repercussa, quae carnem reliquam excedebat. Sic et in pedibus impressa erant signa clavorum et a carne reliquia elevata. Dextrum quoque latus quasi lancea transfixum, cicatrice obducta, quod saepe sanguinem emittebat, ita ut tunica eius cum femoralibus multoties respergeretur sdanguine sacro. (15)
15. QUEM VIU AS CHAGAS? São Francisco sentiu o dever de extrema reserva a respeito das Chagas, seguindo nisto uma de suas normas mais firmes: "Beatus servus, qui secreta Domini conservat in corde suo". Os primeiros biógrafos frisam com freqüência esta forte reserva. (17) Assim, segundo Tomás de Celano, em vida de São Francisco só Frei Elias e Frei Rufino viram a Chaga do lado. (18) As Chagas das mãos e dos pés não podiam ser escondidas tão eficazmente, e por certo ao menos os íntimos as viram com certa freqüência. No entanto, durante os dois anos da estigmatização, o segredo das Chagas de modo geral foi bem mantido não só por São Francisco, mas também pelos poucos íntimos que sabiam do acontecido. Isto se reflete também nas notícias transmitidas nos documentos do século XIII: corriam rumores discretos a respeito, não se sabia nada de certo em vida do Santo, é esta a impressão que fica em quem lê com atenção todas as notícias transmitidas e considera o modo de falar a respeito. Como o Santo conseguiu manter este segredo, é difícil de entender, contudo é um fato. Não será demais supor que as Chagas durante os dois anos passaram por várias modificações como cicatrização, reabertura, aumento, diminuição, de modo que os períodos que se poderiam dizer agudos podem ter sido breves e isto facilitaria o segredo e explicaria o fato. Da Chaga do lado se diz que "saepe" emitia sangue, não sempre, e é tudo o que se sabe.
16. DEPOIS DE MORTO, NO ENTANTO, MUITOS PUDERAM VER AS CHAGAS. "Catervatim tota civitas Assisii ruit, et omnis accelerat regio videre magnalia Dei" (20) cernere mirabile erat in medio rnanuurn et pedum ipsius non davorum quidem puncturas sed ipsos clavos ex eius carne compositos, ferri retenta negredine, ac dextrum latus sanguine rubricatum.. . Accurrebant fratres et filii, et coilacrimantes deosculabantur manus et pedes pii patris cos derelinquentis, necnon dextrum latus.. . Maximum donum sibi exhiberi credebat quivis de populo, si admittebatur non solum ad deosculandum, sed etiam ad videnduni sacra stigmata lesu Christi, quae sanctus Franciscus portabat in corpore suo". Santa Clara com suas filhas também viram as Chagas, e puderam beijá-las, quando o corpo de São Francisco por instantes foi deposto na igrejinha de São Damião, antes de ser sepultado na de São Jorge (22). O fato de tantos terem visto as Chagas depois da morte de São Francisco por certo é enorme dificuldade para explicar a laconicidade de Frei Elias em sua comunicação, e a igual laconicidade de Tomás de Celano e o silêncio da bula de canonização (23). Dificuldades estas, porém, que não diminuem a certeza do que narra Frei Elias e Tomás de Celano.
17. UM FATO EXTRAORDINÁRIO, UMA MENSAGEM. Assim é certo que a estigmatização de São Francisco é um fato e não uma lenda. Além de ser fato, e sem deixar de sê-lo, pertence à categoria dos sinais e solicita a resposta duma "leitura". A força do sinal existe, mas está à espera de quem faça esta "leitura". E cada qual a deve fazer para si, só assim poderá comunicá-la a outros. Comunicada, poderá chegar à sua eficácia em comunidade, como deve ser entre franciscanos. Cabe-nos tentar esta "leitura". Demos ao menos alguns passos.
III. O CONFRONTO COM O ALVERNE
18. A PRIMAZIA DE DEUS. O que aconteceu no Alverne durante o mês de setembro de 1224, e as Chagas impressas na carne de nosso Pai São Francisco, significa e manifesta mais que tudo que Deus é Senhor. Deus se apoderou do Homenzinho de Assis e nele agiu como quis'. Esta realidade eterna e irremovível de que "Deus é Senhor" é o fundamento de tudo em nossa vida natural e na vida da graça: sem ela, tudo é obscuro; com ela, tudo é luz. São Francisco assim entendeu o senhorio de Deus e o aceitou com júbilo e reconhecimento: fez desta realidade o ponto de referência constante de tudo em sua vida. Nunca mais do que no Alverne. Possuímos a respeito uma informação excepcional, do próprio punho de São Francisco, um documento escrito no Alverne depois da estigmatização, ainda no vértice da experiência mística: a "Chartula quam dedit fr. Leoni". Diz-nos o que Deus era para ele:
"Vós sois o santo Senhor e Deus único, que operais maravilhas.
Vós sois o forte.
Vós sois o grande.
Vós sois o Altíssimo.
Vós sois o Rei onipotente, santo Pai, Rei do céu e da terra.
Vós sois o Trino e Uno, Senhor e Deus, Bem universal.
Vós sois o Bem, o Bem universal, o sumo Bem, Senhor e Deus, vivo e verdadeiro.
Vós sois a delícia do amor.
Vós sois a Sabedoria.
Vós sois a Humildade.
Vós sois a Paciência.
Vós sois a Segurança.
Vós sois o Descanso.
Vós sois a Alegria e o Júbilo.
Vós sois a Justiça e a Temperança.
Vós sois a Plenitude e a Riqueza.
Vós sois a Beleza.
Vós sois a Mansidão.
Vós sois o Protetor.
Vós sois o Guarda e o Defensor.
Vós sois a Fortaleza.
Vós sois o Alívio.
Vós sois nossa Esperança.
Vós sois nossa Fé.
Vós sois nossa inefável Doçura.
Vós sois nossa eterna Vida, ó grande e maravilhoso Deus, Senhor
onipotente, misericordioso Redentor".(24)
19. O SENHORIO DE DEUS NA VIDA DE SÃO FRANCISCO não começou a ser aceito e vivido por ele no Alverne, a resposta do Pobrezinho não começou ali. O Senhorio de Deus é de sempre, a resposta do filho de Bernardone começara a ser mais intensa em Spoleto 20 anos antes, O Alverne 1224 significa um vértice insuperado. A "Chartula" é a súmula de uma experiência de Deus muito singular, única. Cada qual de suas expressões merece longa meditação e deve ser transportada para a vida concreta todos os dias. Importa pensar o que significa cada qual das palavras numa experiência tão viva como foi a de São Francisco, tão intensa, tão profunda, tão sincera, tão veraz na expressão, a tal ponto que ainda a mais alta expressão poética fica devendo à realidade experimentada. Importa meditar e viver na mesma direção, para caminhar e chegar a vértices cada vez mais elevados. Até que este hino se transforme, também em nossa vida, em expressão sincera de toda a verdade de nossa existência.
20. DEUS NÃO É ALIENAÇÃO, MAS APROPRIAÇÃO E INTERIORIZAÇÃO DO HOMEM. Vivemos sob nuvem espessa e oprimente de acusação blasfema de que "Deus é alienante" e que "o homem, para encontrar-se a si mesmo, deve livrar-se de Deus". Claro, se Deus não existe - como é tese cada vez mais propagada, o ateísmo dos nossos dias - nada mais alienante para o homem e para a humanidade, que a religião, o cultivo duma relação a Deus. Relação que, aceita por força intrínseca, absorve tudo no absoluto e único Deus e reduz o homem a completa e ilimitada e incomensurável dependência, sujeição, heteronomia, propriedade "de outro". Nada mais absurdo, nada mais prejudicial, claro, se Deus não existe. Mas... Deus existe. Fato irredutível e indestrutível. Verdade. Por isto nada mais destruidor do homem, que negar Deus e negar-se a reconhecer a sua supremacia. Nós homens, "o homem" e "a humanidade" não somos realidades absolutas. Se nossa época prova qualquer coisa, prova que o homem, colocando-se no centro da realidade, no centro de si mesmo, referindo-se a si mesmo, se destrói do modo mais completo e se "aliena" de si mesmo do modo mais absoluto: passa a ser absurdo para si mesmo. Só nos libertamos, só nos encontramos, só fugimos da alienação, só temos sentido, só temos meta e destino, só temos história e só temos consistência "em Deus". "Em Deus" não no sentido panteísta de identificação, nem no sentido aniquilador de absorção, mas no sentido difícil e misterioso de criaturas: existentes de fato e em realidade, mas na limitação e em relação. São Francisco, mais que tudo nesta culminância mística do Alverne, o evidencia do modo mais patente: ninguém mais "ele mesmo", em identidade e diferenciação, que São Francisco, porque ninguém como ele referido a Deus. Ninguém mais "realizado" e "promovido" do que ele, e ele nunca mais realizado e mais promovido que quando Deus lançou mão dele dum modo tão completo como no Alverne. Façamos ressoar esta mensagem em nossa alma e transformemos nossa vida numa ressonância desta mensagem.
21. "COM TODAS AS FORÇAS..." Centro, cerne, núcleo do homem, num sentido absoluto, é Deus. Isto na ordem da realidade é um fato. Ao mesmo tempo e estranhamente um fato que nos cabe "realizar": em nossa inteligência, em nossa vontade, em nossa subjetividade, em nossa afetividade, em tudo o que somos. Esta é a tarefa e meta da vida presente. Tarefa que devemos cumprir nós mesmos pessoalmente, e que ao mesmo tempo envolve "os outros": não é uma tarefa que possamos realizar a sós, separados e isolados, individualistas, mas só em comunhão com "os outros". A dimensão de "os outros" é inseparável de nossa tarefa pessoal, mas de tal modo que a tarefa continua "pessoal" e ninguém a pode realizar em nossa substituição. E é a realização desta tarefa que realiza "comunhão". Sem eIa, nenhuma comunhão verdadeira de homens é possível. Nela, toda a comunhão possível se concretiza superabundantemente. Nela se realizam todas as aspirações legítimas do homem, e do homem em comunhão. Por vontade de ação de Deus não só se realizam, mas são sobre-realizadas numa comunhão com Deus que ultrapassa as mesmas possibilidades ativas desta e de qualquer criação possível: na comunhão que nos faz "theías koinoonói physeoos" (25). Nossa comunhão faz parte do mistério de Deus. É comunhão em que não somos absorvidos, mas permanecemos nós mesmos; em que somos um, todos, e contudo permanecemos indivíduos e pessoas. Ninguém mais "ele mesmo" que São Francisco, ninguém mais indivíduo e pessoa, ninguém mais inserido em comunhão.
22. "IPSA CREATURA LIBERABITUR... IN LIBERTATEM GLORIAE FIBIORUM DEI". Nem só nós, os homens, nos libertamos em Deus, mas conosco libertamos toda a criação, todo o cosmos: animais, plantas, minerais, coisas, estruturas, sistemas, economia, política, ciência, técnica, leis, normas, prescrições, relações, variáveis, progresso, maturação - tudo. No "Cântico do Irmão Sol" de São Francisco temos a impressão de entrever já realizada esta libertação integral do cosmos na transfiguração final. Sem Deus, o cosmos está "alienado", está "em pecado", em Deus encontra a si mesmo. A marcha desta libertação é longa e penosa - "como em dores de parto" - durante todo o tempo do éon presente e se realiza por mil modos e caminhos os mais diversos, convergentes, se corretos, para a libertação final. Ciência e técnica também contribuem. E muito. São, porém, instrumentos e não meta, são instrumentos, sim, mas parciais e provisórios "in via", ineficazes diante da culminância última. Apesar de todos os seus limites e apesar de todas as suas crises, andanças e equívocos, são parte do caminho "em dores de parto". A nós cabe continuar o "Cântico do Irmão Sol" de São Francisco com as estrofes nossas, porque este hino não termina em a natureza "natural", envolve também a "nova natureza" da técnica. O desenvolvimento deste destino e a sua realização progressiva em nossa existência acolhe todas as aspirações dos homens de todos os tempos, também as do homem de hoje, as limpa de manchas e de equívocos, corrige os erros, supera as crises e leva à realização acima de todas as aspirações: em Deus. Esta é a tarefa global que nos cabe cumprir em nossa existência para a parte que nos toca. Para ela, São Francisco é um exemplo forte e cheio de fascínio irresistível. Façamos que nós mesmos e todos os nossos irmãos o sejamos também.
23. "EM CRISTO JESUS". Em seus desígnios, Deus realiza este seu projeto de tal modo que converge no Homem Jesus unido ao Verbo, "di' autou apokatalláxai tà pánta"(27). São Francisco não é "o" modelo, muito menos "o ponto de convergência": isto tudo é Cristo Jesus. São Francisco é, sim, uma realização estupenda da inserção em Cristo, da convergência de tudo em Cristo. Por isto mesmo se transformou em mensagem e sinal para nós: ouvindo-o e imitando-o em sua relação a Cristo, progredimos no caminho régio da convergência em Cristo e da realização dos desígnios de Deus com toda a criação. Nada mais evidente na vida do Homenzinho de Assis que esta sua posição "em Cristo Jesus". No assemelhar-se a Cristo seguiu o caminho mais curto e mais íngreme: a obediência integral ao Evangelho, numa forma tão direta e tão imediata que por dom de Deus também externamente se assemelhou a Cristo em seu peregrinar terrestre. Porque Cristo é "o caminho, a verdade e a vida" (28), fora de Cristo não existe possibilidade de realização do homem. O que é realização do homem, o é em Cristo - e o que não o é em Cristo, não é realização do homem. Em a vida de São Francisco, toda ela, isto é evidente, e com as Chagas sua força de sinal cresceu em significação perceptível.
24. "NISI IN CRUCE D0MINI NOSTRI IESU CHRISTI". (29) A culminância do Alverne na vida de São Francisco nos confronta de modo singular com o mistério da Cruz. Percebemos quanto é profundo o contraste das Chagas com o caminho que a humanidade tenta hoje, como o tentou sempre: fuga da Cruz de Cristo, para o sonho ilusório dum paraíso 'terrestre, que contrasta com os desígnios de Deus. Contra este engano perigoso, que hoje se concretiza no consumismo desenfreado e elevado a idolatria, a estigmatização do Alverne possui uma força de mensagem e de sinal incalculável. Os esforços ingentes, tremendos em busca de um paraíso terrestre, que cumprimos hoje, são vãos como sempre foram vãos: não podem produzir senão amarga desilusão. O caminho do destino humano é outro: está marcado pela Cruz. É necessário recolocar esta verdade em nossa mente e realizá-la em nossa vida. Reencontraremos o caminho estreito. (30) O seu roteiro é oposto ao que os homens preferem e está codificado nas Bem-aventuranças, no Sermão da Montanha. Estamos por demais metidos no caminho largo e fácil dos falsos profetas, é hora de passarmos para o caminho estreito de Cristo, o da Cruz. Reencontraremos também a sã austeridade, a disciplina, o rigor de nossa vida franciscana, a pobreza - "Dona Pobreza" - que São Francisco amou porque Cristo a amou.
25. PÁSCOA DA RESSURREIÇÃO. A Cruz, no entanto, não é a meta, é caminho. Não fomos feitos para a Cruz, fomos feitos para a Páscoa da Ressurreição. Na mística da Cruz - na mística do sofrimento, da austeridade, do martírio... - por vezes, se esquece esta verdade. À primeira vista se tem a impressão de que também São Francisco a esqueceu um pouco. No entanto, basta lembrar a importância que deu à alegria, basta lembrar a alegria com que viveu e que propôs aos seus irmãos, para compreender que também para ele a Cruz era caminho e não meta derradeira. Basta lembrar o trânsito de São Francisco para compreender quanto estava centrado na Páscoa da Ressurreição. É grande vantagem para nós, hoje, que esta verdade da relação da Cruz à Páscoa foi posta novamente na devida luz e está sendo proclamada com força. Importa que seja proclamada ainda com mais força, vivida com mais fidelidade, sentida com mais intensidade e realizada com mais alegria. Não se trata apenas duma ressurreição futura, não se trata apenas duma esperança, mas de uma realidade já presente e ativa, já realizada em nossa vida pelo mistério do batismo. Já estamos misteriosamente na Páscoa da Ressurreição. Mas ao mesmo tempo a esta nossa Páscoa da Ressurreição falta a realização subjetiva em nossa vida: já estamos e ainda não estamos. Entre estes dois termos está o nosso caminho da Cruz.
26. TRÍDUO PASCAL. Feliz a disposição da nova Liturgia da Semana Santa, que conglobou a Cruz no "mistério Pascal". Não nestes termos, não nesta modalidade, mas nos fatos de sua vida e em sua experiência espiritual São Francisco fizera a mesma integração dos mistérios Pascais. No Alverne - isto é um dos aspectos mais fortes do sinal e da mensagem - o Serafim alado que lhe apareceu, apareceu crucificado, mas em luminosidade de glória. Encheu-o de alegria imensa, de felicidade superabundante, mas, porque ele São Francisco estava ainda a caminho, nele as Chagas foram dolorosas, penosas, crucifixão que durou dois anos. Como antes em toda a sua vida, também nestes dois anos de crucifixão sofreu agonia e abandono, passou pela prova dos sofrimentos corporais e passou pela escuridão terrível das noites místicas. Agonia e escuridão, porém, que se transfiguravam de luz e glória na alegria profunda e exuberante que nunca o deixava. Frisam-no muitas vezes os seus primeiros biógrafos. Esta alegria lhe vinha de ser assemelhado a Cristo no caminho da Cruz, e de saber que assim avançava em direção à Ressurreição em Cristo. A morte para ele foi deveras um trânsito desta vida à vida perene, na esperança da ressurreição do corpo. Esta integração dos vários elementos do mistério Pascal é mensagem forte para nossos dias. É mensagem contra o "aleluia" enganador dos que pensam já estar para além da Cruz e da prova. É também mensagem e correção forte contra austeridade, ascese, rigor, cultivo de sofrimento como meta e como fundamento de espiritualidade - deformação da mensagem cristã e sementeira ou fruto de deformações psíquicas - em vez de elemento a caminho, instrumento, condição da vida presente, corretivo de nossas imperfeições, da concupiscência que não deixa de ser ativa nem mesmo nos batizados enquanto vivos sobre esta terra.
27. SANTA MARIA. A capelinha que São Francisco fez erigir no Alverne, à sua chegada - feita de paus e de ramos então, nesta primeira e única quaresma que o Santo passou no alto do monte - dedicou-a a Maria dos Anjos. Maria Santíssima está presente na sua vida interior em tudo. Com Cristo, em Cristo, para São Francisco tinha que estar sempre a Mãe de Cristo. Sua devoção à sua Senhora, à sua Rainha, à Mãe do seu Senhor era profunda, terna e sentida, com os acentos do cavalheirismo medieval. Não sabemos particularidades a respeito do exercício de devoção marial no Alverne em 1224, mas o fato de ter dedicado a capelinha a Santa Maria dos Anjos diz que aí esteve muitas vezes entretido com sua Rainha. O Concílio nos convidou a que aperfeiçoássemos nossa piedade marial e a limpássemos de exageros e deformações. Isto, certamente, não significa, na intenção do Concílio, que devamos eliminar a devoção e que devamos agir indiscriminadamente contra a religiosidade popular de veneração e confiança na Mãe de Deus. Significa, sim, um aprofundamento e um progresso na direção de formas de devoção em verdade, fé, confiança, amor, imitação. Aconteceu que houve uma inflexão sensível na piedade marial, e é tempo de recuperar-nos. Ponhamos, com São Francisco, Santa Maria em nosso Alverne. Quanto mais nossa piedade marial for autêntica e conforme à fé, tanto mais será intensa e sentida. Como a de São Francisco.
28. VIDA DE ORAÇÃO. Alverne mostra que São Francisco, ainda no fim de sua vida, sentia a necessidade do que hoje chamamos "tempos fortes de oração" e de "experiência do deserto". Sua absorção em Deus era fortíssima e profundíssima, a tal ponto que tudo de fato era oração: o trabalho, o contato com os seus irmãos, o seu peregrinar apostólico, a convivência e o encontro com as criaturas todas. No entanto, sentia ainda "o pó das estradas que se apega aos pés dos apóstolos", sentia ainda a necessidade de retemperar sua vida de oração com estas "quaresmas" de vida retirada, em maior rigor de penitência e em maior radicalidade de recolhimento, em maior plenitude de oração. Frisa-se com razão que oração e vida, oração e trabalho, oração e convivência humana, oração e apostolado, oração e experiência do cosmos devem formar uma unidade e não devem se justapor, muito menos se impedir. Mas facilmente esquecemos que este "deve ser assim" é altíssima meta e que na vida presente esta convergência e identificação não costumam ser um fato cotidiano, são meta distante e raras vezes atingida. Nada mais pernicioso para a vida de oração do que imaginar ter atingido a meta quando ainda não se chegou até lá.
29. ORAÇÃO QUE CHEGA A SER VIDA DA ALMA. Se por certo necessitamos de "tempos fortes de oração" e de "tempo de deserto", precisamos também cuidar de que nos entretempos a oração não míngüe, que seja de fato a vida da alma, a realidade ininterrupta, constante de nossa existência. É só na oração que em Deus deveras encontramos os irmãos e encontramos a criação, o apostolado, o trabalho, encontramos nossa realização e promoção, trabalhamos para a dos outros: pois é na oração que realizamos subjetivamente o consórcio da natureza divina, que realizamos nosso estar "em Cristo". São Francisco progrediu tanto neste caminho, que se transformou num sinal e numa mensagem eloqüente de quanto o mesmo "humanum" se realiza nestas altas sendas da vida espiritual. Não se progride na vida espiritual por alienação, mas por integração: esta a mensagem do Alverne. Apenas: é necessário estar atento com nossa fraqueza e não queimar as etapas. Na mesma medida em que a oração chega a ser vida de nossa alma e o for de modo integral, nesta mesma medida estaremos progredidos na integração de tudo em Deus. Tudo será oração.
CONCLUSÃO
30. São Francisco partiu do Alverne em 1224 com um grande mistério escondido em sua alma. Se não pôde esconder inteiramente as Chagas, escondeu bem recôndito o que tinha vivido em tantos dias de intimidade com Deus, com Cristo, com Maria Santíssima, mais que tudo o que tinha vivido e experimentado durante a aparição do Serafim crucificado e o que significa esta aparição. Algo transparece na "Chartula" que escreveu para Frei Leão, O mais o levou para o além como o "segredo do Rei". Contudo, sem podermos saber o conteúdo, sabemos que o Alverne é para São Francisco uma experiência única de vida com Deus. As Chagas que portou durante dois anos foram o sinal permanente desta experiência e o mantiveram unido a ela. Também para nós, embora desconheçamos o segredo desta experiência mística, o Alverne é uma lição altíssima e intensa, uma mensagem forte, um estímulo poderoso. Há 750 anos este santo monte está presente na mente de todos os filhos de São Francisco, chamando-os e estimulando-os à vida com Deus, em Cristo, na Cruz, para a Páscoa da Ressurreição. Terminadas as comemorações jubilares, que o santo monte Alverne continue a influir poderosamente em nossa alma.
Que São Francisco nos consiga para todos esta graça.
Roma, em Santa Maria Medianeira, aos 24 de Agosto de 1975.
FREI CONSTANTINO KOSER O.F.M.
Ministro Geral

Notas
1. Cel. 211, cap. 70, in Anal. Franc. vol. X, Quaracchi 1926-1941, p. 252. Edição brasileira, Vozes, Petrópolis 1975. p: 206-207. "Levava a cruz enraizada em seu coração. Por isso fulgiam exteriormente em sua carne os estigmas, cuja raiz tinha penetrado profundamente em seu coração".
2. (2 Lc 2,34)
3. "Anhang: Untersuchung der Wundmale" de seu livro: Froj: von Assisi, Em Helligenbild, Leipzig. 1856, p. 143-202.
4. Ct. o texto em Anal. Franc. vol. X, p. 526s, n. 5.
5. Em: Coil. Franc. XXXIII (1963), p. 210-266; 382-422; XXXIV (1964), p. 5-62; 241-338.
6. Anal. Franc. vol. X, p. 526s, n. 5.
7. Opuscula S. P. Francisci, Quaracchi 1949, p. 199. Os Escritos de São Francisco de Assis, Vozes 1970, p. 179.
8. Anal. Franc. vol. X, p. 72-73. Celano, Vida de São Francisco de Assis, p. 60 e 61.
9. Loc. cit., p. 88. Celano, Vida de São Francisco, p. 71-72.
10. 1 Cel. n. 94, Anal. Franc. vol. X, p. 79.
11. Leg. Maior, cap. 13, n. 3, Anal. Franc. vol. X, p. 616, n. 3.
12; Loc. cit., p. 79.
13. Loc. cit., p. 617.
14. Epistola, n. 5. Anal. Franc. vol. X, p. 526-527.
15. 1 Cel. 94, Anal. Franc. vol. X, p. 72-73.
16. Admon. XXVIII, Quaracchi, 1949, p. 19.
17. Cf. p. ex., 1 Ccl. n. 95-96, Anal. Franc. vol. X, p. 73-74; cf. também lc. p. 189; 207;
S. I3oaventura, Leg. Maior, Anal. Franc. vol. X, p. 583; 603; 617.
18. 1 Cel. n. 95, Anal. Franc. vol. X, p. 73.
19. Frei Elias, na Epístola, n. 5, Anal. Franc. vol. X, p. 527; Tomás de Celano diz "multoties", cl. 1 Cel. 64, Anal. Franc. vol. X, p. 73.
20. 1 Cel. n. 112, Anal. Franc. vol. X, p. 87. Celano, Vida de São Francisco de Assis: 'Toda a cidade de Assis veio em peso, e a região inteira acorreu para presenciar as grandezas de Deus".
21. 1 Cel. n. 113, Anal. Franc. vol. X, p. 88. Celano, Vida de São Francisco de Assis: 'Era admirável ver em suas mãos e pés não as feridas dos cravos mas os próprios cravos, formados por sua carne, com a cor escura do ferro, e a seu lado direito rubro de sangue... Acorriam os frades seus filhos e, chorando, beijavam as mãos e os pés do piedoso pai que os deixava, e também o lado direito, cuja chaga era uma lembrança preclara daquele que também derramou sangue e água deste mesmo lugar e assim nos reconciliou com o Pai. Para as pessoas do povo era o maior favor serem admitidas não só para beijar mas até só para ver os sagrados estigmas de Jesus Cristo, que São Francisco trazia em seu corpo".
22. 1 Cel. n. 116-117, Anal. Franc. vol. X p. 91-93.
23. "Mira circa nos", de 19-7-1228, embora Gregório IX na "Usque ad terminos" de 31-3-1237 afirme que os estigmas foram para ele "causa specialis" para a canonização.
24. Opuscula S. P. Franciscj, Quaracchi 1949, p. 124-125. Os Escritos, p. 179-180. "di' autoã
25. 2Pdr 1,4.
26. Rom 8,21.
27. Col 1,20.
28. Jo 14,6.
29. Gál 6,14.
30. Mt 7,14.


A IMPRESSÃO DAS CHAGAS
Frei Atílio Abati
Ao falar da paixão e morte do Senhor Jesus, por nos ter dado sua própria vida, São Francisco de Assis chegava às lágrimas. Daí sua exclamação de júbilo: "Que felicidade ter um tal irmão" (2CFi 56)!
Em 1224, no Monte Alveme, Francisco recebe os estigmas da paixão do Senhor, provavelmente, no dia de São Miguel Arcanjo, 29 de setembro.
A impressão das chagas, em seu corpo, não foi senão a coroação de toda uma vida. Desde o início de sua conversão, ele se deslumbrava ao contemplar o Cristo de São Damião, tão humano, tão despojado, tão pobre e crucificado. Por isso, este Cristo ocupa o lugar central de toda sua vida: "Não quero gloriar-me a não ser na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo" (Gal 6,14).
Foi ante este Cristo, que compungido rezou: "Iluminai as trevas de meu espírito, concedei-me uma fé íntegra, uma esperança firme e um amor perfeito" (OrCr). E continua: "Nele está todo perdão, toda graça e toda glória, de todos os penitentes e justos" (RegNB 30).
A cruz, fonte de vida
Assim compreende-se porque na alma deste servo de Deus as chagas já estavam impressas desde o início de seu projeto de vida.
Francisco teve a sensibilidade de descobrir a face do Cristo Sofredor nos conflitos sociais, nos leprosos e nos marginalizados. Vê no Cristo Crucificado o servo perfeito, que aceita viver, sofrer e morrer para nos salvar.
Francisco passou por momentos de crise, mas não perdeu a chama da esperança e da confiança. Apesar das provações, sentiu-se cativado pelo Cristo. Ele sabia que o caminho para a glória passa pelo sofrimento. Sua opção de vida foi pelo caminho da renúncia, da doação e da cruz. Todavia, assumiu sua missão até as últimas conseqüências, porque o caminho da cruz é fonte de vida.
Francisco captou o profundo sentido da cruz e, por isso, sentiu-se envolvido pelo amor do Mestre que salva, que liberta e que impulsiona para a Ressurreição.

Francisco e o Cristo
Francisco vivia fascinado pelo Cristo, que veio para realizar a vontade do Pai e se fez obediente até morte, e morte de cruz. Aqui está a explicação por que Francisco usava o Tau. Este lhe lembrava a cruz, sinal de salvação, símbolo da vitória sobre o mal. Mais, a cruz torna-se símbolo e sinal da bondade e da misericórdia divinas.
Francisco ora ao Pai, pedindo provar no seu corpo as dores do Senhor Jesus e sentir tão grande amor pelo Crucificado como Ele sentiu por nós. As chagas em seu corpo não são senão a aprovação divina e a resposta ao seu ardente desejo de sentir em sua carne os sofrimentos do Crucificado. E de fato aconteceu. Francisco, assim, é açoitado cruelmente pelo sofrimento.

A recompensa do Pai
No Cristo crucificado, Francisco encontra toda vitalidade que lhe abrasava o coração, a ponto de transformar- se no Cristo estigmatizado. O Cristo pobre e sofredor, estava em seu projeto de vida. Seria Ele como uma auto-estrada a conduzi-lo, mais e mais, a uma profunda união com Deus, a ponto de, exteriormente, pelas cinco chagas, gravadas em seu corpo, assemelhar-se ao Cristo crucificado.
Sabemos, outrossim, que na alma deste santo, as chagas do Senhor já estavam impressas. E como Cristo foi recompensado pelo Pai, ressuscitando-o e vencendo a morte, Francisco, no Monte Alverne, também recompensado por Deus, em seu corpo, pela impressão dos estigmas de seu Filho Jesus Cristo. Isto é fruto de sua vida de fidelidade e de seguimento irrestrito ao Senhor.
Esta transformação interior e exterior, identlficando-se ao Cristo, fazia-o exclamar: "Pois para mim, o viver é Cristo e o morrer é lucro" (Fil 1,21).
Fazer a vontade de Pai
Em todas as situações, consoladoras ou dolorosas, Francisco procurava fazer a vontade do Pai: "Concede-nos que façamos aquilo que sabemos ser de tua vontade e queiramos aquilo que te agrada. E assim purificados e, interiormente abrasados pelo fogo do Espírito Santo, sermos capazes de seguir os passos de teu Filho Jesus Cristo e chegar a ti, ó Altíssimo" (COrd 50-52).
Gostaríamos de lembrar que, desde a Porciúncula, igrejinha de Nossa Senhora dos Anjos, berço da Ordem Franciscana, local de início de sua conversão concluída no Monte Alverne, Francisco fez uma caminhada lenta e progressiva, até sua total configuração com o Crucificado.

Para reflexão
01. Como justificar os estigmas de Francisco?
02. Os sofrimentos ligam-nos aos sofrimentos, à Cruz do Cristo. Como então aceitar a nossa cruz e os nossos sofrimentos?
03. Diante do Cristo crucificado, Francisco chegava às lágrimas. Que mensagem o Cristo da Cruz lhe deLva?
Texto para meditação (CFI5)
"E agora, anuncio-vos uma grande alegria e um milagre extraordinário. Não se ouviu no mundo falar de tal portento, exceto quanto ao Filho de Deus, que é o Cristo Senhor. Algum tempo antes de sua morte, nosso irmão e pai apareceu crucificado, trazendo gravadas em seu corpo as cinco chagas, que são verdadeiramente os estigmas de Cristo. Suas mãos e seus pés estavam traspassa- dos, apresentando uma ferida como de prego, em ambos os lados, e havia cicatrizes da cor escura dos pregos. O seu lado parecia traspassado por uma lança e muitas vezes saíam gotas de sangue".
Do livro, "Francisco, um Encanto de Vida", de Frei Atílio Abati, ofm, editora Vozes, 2002.

OS ESTIGMAS DE FRANCISCO E OS NOSSOS
Ainda que em nós não foram impressos os estigmas do crucificado de modo visível, cada um tem suas feridas que podem salvar, que podem tornar-se fonte de salvação para si e para os outros. A cada um que se deixa ferir em nome de Cristo e que leva em si a sua cruz, Francisco repete o que disse a Leão: também tu estás marcado com a cruz de Cristo e por isso és abençoado. És um possuído de Deus e estás sob a proteção dele.

Leonhard Lehmann – Francisco, mestre de oração



DO MONTE ALVERNE À IRMÃ MORTE CORPORAL
Os dois últimos anos da vida de Francisco foram um Calvário! Os problemas na Ordem continuam. Sobretudo, com divisões internas. Vimos há pouco como ele passou a comungar mais profundamente com o mistério de Deus pela prática da misericórdia e da paciência com os pecados dos frades. Francisco se retira no Monte Alverne. Lá, conversa com Deus, lembra-se do Crucificado e, assim, mergulha mais profundamente em seu mistério. Isto é, decide continuar amando seus irmãos, mesmo assim. E o que acontece? Vemo-lo totalmente identificado com Aquele que, na cruz, entregou a própria vida pelos amigos. Vemo-lo de tal maneira em comunhão com o mistério deste amor solidário e misericordioso de Deus que, de repente, as próprias chagas do seu Senhor lhe aparecem no corpo. Hoje se diria: A paixão de Cristo se somatiza na paixão de Francisco. Em outras palavras, escreve Alexander Gerken:

"O que mais crucificou Francisco durante os dois anos anteriores à sua morte foi a divisão da Ordem, que tinha crescido demais até para ele. Sofria vendo a desunião existente nela e como muitos de seus irmãos não podiam ou até não queriam seguir o ideal primitivo. O fato de não abandoná-los, de amá-los, e amá-los em sua fragilidade, 'até a cruz',constitui o conteúdo e a causa de sua experiência da cruz no Monte Alverne. O sofrimento pela Ordem lhe gravou as chagas e, a partir de seu amor crente, soube que eram as chagas do Crucificado, que não reteve para si sua própria vida, mas a entregou por todos nós".

Francisco se sente realmente mergulhado no "segredo" de Deus, seu altíssimo Senhor e Rei, único Bem, referencial único para a construção de uma autêntica fraternidade humana. E, nesta experiência de comunhão total com o modo-de-ser do seu Senhor, consola seu inseparável companheiro Frei Leão, compondo este maravilhoso Hino de Louvor a Deus:

"Vós sois o santo Senhor Deus único, que operais maravilhas! Vós sois o Forte. Vós sois o Grande. Vós sois o Altíssimo. Vós sois o Rei onipotente, santo Pai, Rei do céu e da terra. Vós sois o Trino e Uno, Senhor e Deus, Bem universal. Vós sois o Bem, o Bem universal, o sumo Bem, Senhor e Deus vivo e verdadeiro. Vós sois a delícia do amor. Vós sois a Sabedoria. Vós sois a Humildade. Vós sois a Paciência. Vós sois a Segurança. Vós sois o Descanso. Vós sois a Alegria e Júbilo. Vós sois a Justiça e a Temperança. Vós sois a plenitude da Riqueza..."

Daí em diante, a vida de Francisco foi de atrozes sofrimentos, também corporais. Vivia esmagado por toda sorte de doenças e provações. Mas, ao mesmo tempo, provava incomparável alegria, pois, desse jeito, sentia-se mais e mais em comunhão com seu Senhor crucificado e, neste Senhor, em comunhão com o "coração" de Deus mesmo e, no "coração" de Deus, em comunhão com todos os crucificados da sociedade e todas as criaturas... Por isso, como sempre fora em sua caminhada de contínua conversão, Francisco canta e convida a cantar a grandeza infinita do amor de Deus. Desse Deus que "quis estar com os seres perdidos, os foras-da-lei, os publicanos e os pecadores", que "conviveu com eles e sentou-se à sua mesa". Desse Deus que "por fim morreu com eles a morte dos condenados. O Evangelho era esta realidade inaudita: a revelação de um amor divino que nada de humano justifica e que se oferece prioritariamente aos que não podem se prevalecer nem da estima do mundo, nem das posições que ocupam na sociedade, nem de sua riqueza, nem de seu sucesso social, nem mesmo de seus méritos ou de suas virtudes, mas que esperam tudo unicamente da graça de Deus".

Francisco canta e convida a cantar. Sua vida transforma-se em poesia, porque expressa o sonho mais profundo do ser humano-e-de-Deus, sonho de fraternidade universal. Compõe o famoso Cântico das Criaturas, "o canto de um homem que, durante toda sua vida, trabalhou, lutou, sofreu para que houvesse um pouco mais de fraternidade entre os homens e para que aparecesse, enfim, na sociedade de seu tempo, a humanidade de Deus". A partir da comunhão profunda com esta "humanidade de Deus", é que Francisco e seus companheiros "aprenderam a olhar os seres e as coisas, ingênua e fraternalmente, com simplicidade e cortesia. Deixaram de vê-los sob o ângulo de seu valor de venda, para considerá-los como criaturas de Deus, dignos de atenção em si mesmos. Assim descobriram o esplendor do mundo, o esplendor das coisas simples. Seu olhar se deteve, maravilhado, nas realidades mais humildes, mais cotidianas, que eram companheiras de sua vida de pobres: a luz, a água, o fogo, o vento, a terra. Sim, a terra de todos os dias, a terra mãe. Como era bela a seus olhos esta terra, vista para além de toda ambição e de toda vontade de poder! Deixava de ser um campo de luta para tornar-se o lugar da grande fraternidade dos seres: 'Nossa irmã a Mãe Terra".

Francisco canta e convida a cantar e celebrar o Amor criador e redentor, sobretudo quando percebe aproximar-se o momento de sua máxima comunhão com o mistério do Deus pobre e solidário, o momento da morte. O momento da máxima experiência de pobreza, pois aí Francisco fará de verdade a experiência de não ser mais dono de nada, nem mesmo da vida. Francisco canta e dá as boas-vindas a esta que ele chama também de "irmã". Ela é para ele "a porta da vida". E para celebrar a chegada deste momento de comunhão absoluta com a Pobreza, pede inclusive que deixem seu corpo despido sobre o chão por algum tempo. "E assim chegou a hora", escreve Tomás de Celano, concluindo: "Tendo completado em si mesmo todos os mistérios de Cristo, voou feliz para Deus". E Boaventura: "Cumpridos, enfim, todos os desígnios de Deus em Francisco, sua alma santíssima livrou-se da carne para ser absorvida no abismo da claridade de Deus, e dormiu tranquilamente no Senhor". Realiza-se nele o que havia pedido, parafraseando a oração do Pai-Nosso. "Venha a nós o vosso reino: para que reineis em nós por vossa graça e nos deixeis entrar no vosso reino, onde veremos a vós mesmo sem véu, teremos o amor perfeito a vós, a beatífica comunhão convosco, a fruição de vossa essência".

Texto do livro "Herança Franciscana", do capítulo "A experiência de Comunhão com o Mistério de Deus em Francisco de Assis", de Frei José Ariovaldo da Silva, ofm.

ELE SE TRANSFORMOU NUM OUTRO CRUCIFICADO PELO AMOR E PELA COMPAIXÃO
Leonardo Boff

14 de setembro de 1224, festa da exaltação da cruz. Quarenta dias de jejum e orações. No monte Alverne. Nas pedras. No silêncio. Na madrugada. Francisco, voltado para o Oriente, em lágrimas, orava: "Senhor meu, Jesus Cristo, duas graças te peço antes que eu morra: a primeira é que em vida eu sinta na alma e no corpo, quanto for possível, aquelas dores que tu, doce Jesus, suportaste na hora da tua acerbíssima paixão. A segunda é que eu sinta no meu coração, quanto for possível, aquele excessivo amor do qual tu, Filho de Deus, estavas inflamado para voluntariamente suportar uma tal paixão por nós pecadores".
Francisco pede dor e amor. Na medida em que ia mergulhando na Paixão de Cristo, diz-nos o relato antigo, "todo ele se transformava em Jesus pelo amor e pela com-paixão".
Nisso, desce do céu o próprio Cristo em forma de Serafim, na imagem de um homem crucificado. Inefável encontro! Francisco quase morre de alegria pela visão do Amado e de dor pelas chagas do Crucificado. lntuiu que devia se identificar totalmente com Cristo. A dor iria rimar com o amor. O Gólgota e o Calvário se encarnariam em seu corpo.
A montanha inteira se acendeu, se inflamou e iluminou os montes e vales vizinhos, como se houvesse sol sobre a terra.
O calor da ardentíssima Paixão de Jesus se transforma em fogo de amor nos membros de Francisco. Mãos com mãos, pés com pés, lado aberto com lado a se abrir. Irrompem sangrando no corpo do beato Francisco os estigmas do santíssimo Salvador. O alter Christus está pronto. Deu-se uma identificação entre redimido e Redentor como jamais na história. Francisco se transformou na estampa de Cristo: "Despi Francisco e vereis Cristo; vesti Cristo e vereis Francisco"!
Nasceu da cruz e das chagas o homem novo. Agora ele pode cantar o hino da confraternização universal, porque não há mais inimigos, todos se fizeram irmãos e irmãs. Amém. Aleluia!

Do livro "Francisco de Assis, o homem do Paraíso", 1999, Leonardo Boff, Vozes.

PADRE PIO, O CASO MAIS RECENTE DE UM ESTIGMATIZADO
Francesco Forgione (1887-1968), o Padre Pio de Pietrelcina, era religioso capuchinho que, por receber os sinais da crucificação de Jesus (as feridas nas mãos, nos pés e no tórax), ficou conhecido como "O Estigmatizado de Gargano" (região onde vivia na Itália).

Os estigmas de Pe. Pio começaram no dia 20 de setembro de 1918 e duraram até 23 de setembro de 1968. Segundo o novo santo da Igreja, canonizado este ano pelo Papa João Paulo II, estava no Coro da Igreja, depois de celebrar a Santa Missa, quando foi surpreendido com os estigmas Seu grito lancinante atravessou a nave da igreja, onde se encontravam alguns de seus confrades em oração. Neste período de calvário de Pe. Pio, vários laudos médicos foram feitos e todos não conseguiram classificar os estigmas dentro da clínica médica.

Acompanhe este relatório do Dr. Romanelli, que o examinou por cinco vezes em quinze meses.

"Padre Pio tem um corte profundo, paralelo às costelas, no quinto espaço intercostal de seu lado esquerdo, medindo de 7 a 8 cm de comprimento. Na lesão das mãos, há grande abundância de sangue arterial. Contudo não se verifica inflamação alguma nas bordas da ferida, mas tornou-se uma zona de grande sensibilidade ao menor toque. A ferida das mãos apresenta-se recoberta por uma membrana de um vermelho escuro, mas também não se verifica inflamação, nem edema. Quando pressionei com meus próprios dedos a palma e o dorso das mãos, tive a impressão de haver um espaço vazio. Pressionando as feridas desta forma (na palma e no dorso da mão), não se pode saber se elas se comunicam, pois uma pressão mais forte causa uma dor lancinante. No entanto, repetindo várias vezes a experiência, pela manhã e à tarde, cheguei à mesma conclusão. A lesão dos pés tem as mesmas características da lesão das mãos, mas devido à pele dos pés ser mais espessa, fica difícil de repetir a experiência das mãos.

Examinei Padre Pio cinco vezes, num período de quinze meses. Embora tenha notado certas modificações nos ferimentos, não me foi possível diagnosticar ou mesmo classificar suas lesões, segundo as cânones da clínica médica.

O MONTE ALVERNE
Na Toscana, existe um monte rochoso e coberto de bosques, inacessível e sublime, com fendas horríveis cobertas de musgo e de frescor. Há muitos anos, o conde Orlando de Chiusi lho doara, em sinal de devoção, para que se servisse dele nos seus encontros com Deus.
Em agosto de 1224 subiu Francisco com alguns irmãos os mil e trezentos metros do Monte Alverne. É difícil ao turista que sobe hoje de automóvel esse monte, imaginar o que significava para Francisco, já esgotado, viajar a lombo de burro pelos caminhos sinuosos até chegar ao cimo da montanha, onde ela parece abrir-se subitamente, oferecendo, do alto duma rocha íngreme, vista para os vales lá embaixo. Cuidados, privações e enfermidades tinham enfraquecido o corpo desse homem de quarenta e dois anos. Francisco sempre se sentiu à vontade nos cumes das montanhas. Desejava afastar-se das últimas preocupações a respeito de sua Ordem, das decepções e da falta de compreensão. Pediu que o levassem a uma abertura na rocha, onde ainda se vê uma grade no lugar em que ele dormia; pode-se supor que não foi mudada muita coisa naqueles blocos de pedra úmidos e mofados.
Ano após ano, penetrava cada vez mais na essência de Deus até chegar à mais elevada forma que se possa imaginar na terra: à contemplação mística de Deus. É esta contemplação mística que ele experimentará de uma forma única na solidão do Alverne, pelo espaço de quarenta dias (de 15 de agosto até 29 de setembro, festa de São Miguel). Ele se retira do convívio de seus irmãos e só o irmão Leão pode lhe levar diariamente um pouco de pão e água durante a sua viagem mística ao invisível.
(Do livro Francisco de Assis, Profeta de Nosso Tempo, de N. G. Van Doornik)

O PERFEITO AMOR DE SÃO FRANCISCO AO CRUCIFICADO
Frei João Mannes, OFM
No dia 17 de setembro celebra-se a festa da impressão das chagas de São Francisco de Assis. Os estigmas que Francisco recebeu em 1224, no Monte Alverne, após uma visão do Cristo crucificado em forma de Serafim alado, são sinais visíveis de sua semelhança à humanidade de Cristo, nos seus três modos: na vida, na paixão e na ressurreição.
Francisco encontrou-se pela primeira vez com o Crucificado na pequena Igreja de São Damião. Num certo dia, conduzido pelo Espírito, entrou nessa Igreja e prostrou-se diante da imagem do Cristo crucificado que, movendo de forma inaudita os seus lábios, disse: “Francisco, vai e restaura minha casa que, como vês, está toda destruída” (2Cel 10,5). E, conta-nos Celano, que Francisco sentiu desde então uma inefável mudança em si mesmo, pois são impressos mais profundamente no seu coração, embora ainda não na carne, os estigmas da venerável paixão.
No entanto, foi ao ouvir o Evangelho acerca da missão dos apóstolos (Mt 10, 7-13), que Francisco compreendeu o real significado da voz do Crucificado, e imediatamente exclamou: “É isto que eu quero, é isto que eu procuro, é isto que eu desejo fazer do íntimo do coração” (1Cel 8,22). Assim, sob o toque ou o apelo de uma afeição, começou devotadamente a colocar em prática o que ouvira, isto é, distribuiu aos pobres todos os seus bens materiais, bem como renegou-se a si mesmo para que, exterior e interiormente livre, pudesse ir pelo mundo e anunciar aos homens a paz, a penitência e, enfim, o amor não amado de Deus.
O amor que é Deus realizou-se na sua profundeza, largura e altitude na pessoa de Jesus Cristo. A encarnação, o estábulo, o lava-pés e a Eucaristia são expressões concretas do modo de amar como só o Deus de Jesus Cristo pode e sabe amar. Porém, foi especialmente ao entregar incondicional e gratuitamente a sua vida na Cruz, que o Filho de Deus revelou à humanidade que Deus é essencialmente caridade perfeita.
Francisco, por inspiração divina, abraçou pobre e humildemente a cruz de Jesus e deixou-se impregnar, arrebatar e transformar totalmente pelo espírito de abnegação divina. Isso quer dizer que a imitação de Cristo, por parte de Francisco, não é mera repetição mecânica dos gestos exteriores de Jesus, mas é manifestação de sua profunda sintonia com a experiência originária de Jesus Cristo: o Reino de Deus. Somente quem possui o Espírito do Senhor pode observar “com simplicidade e pureza” a Regra e o Testamento de São Francisco e realizar em si mesmo as santas operações do Senhor.
Na Terceira consideração dos sacrossantos estigmas considera-se que, aproximando-se a festa da Santa Cruz no mês de setembro, o pai Francisco, na hora do alvorecer, se pôs em oração, diante da saída de sua cela, e entre lágrimas orava desta forma: “Ó Senhor meu Jesus Cristo, duas graças te peço que me faças antes que eu morra: a primeira é que em vida eu sinta na alma e no corpo, quanto for possível, aquelas dores que tu, doce Jesus, suportaste na hora da tua acerbíssima paixão; a segunda é que eu sinta no meu coração, quanto for possível, aquele excessivo amor do qual tu, Filho de Deus, estavas inflamado para voluntariamente suportar uma tal paixão por nós pecadores”(I Fioretti)). E, relata Boaventura que, enquanto Francisco rezava, “viu um Serafim que tinha seis asas (cf. Is 6,2) tão inflamadas quão esplêndidas a descer da sublimidade dos céus. E [...] apareceu entre as asas a imagem de um homem crucificado que tinha as mãos em forma de cruz e os pés estendidos e pregados na cruz. [...] Imediatamente começaram a aparecer nas mãos e nos pés dele os sinais dos cravos” (LM 13,3). Assim, Francisco transformara-se todo na semelhança de Cristo crucificado (cf LM 13,5). Pois, de fato, trazia Jesus no coração, na boca, nos ouvidos, nos olhos, nas mãos, nos sentimentos e em todos os demais membros (cf. I Cel 9,115), e conseqüentemente podia exclamar com o apóstolo Paulo: “Eu vivo, mas já não sou eu, é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20).
O Pobre de Assis, no seguimento de Jesus Cristo, perdeu a sua própria vida, mas recuperou-a inteiramente em Deus, de acordo com a palavra do Evangelho: “Quem perder a sua vida por causa de mim vai encontrá-la” (Mt 12,25). Todavia, Francisco não somente reencontrou a si mesmo em Deus, como filho de Deus, mas a todos os seres do universo. O Cântico das Criaturas, que compôs pouco antes de sua morte corporal, é expressão jubilosa dessa intensa experiência eco-espiritual: “Louvado sejas meu Senhor, com todas as tuas criaturas”.
O pai Francisco tornou-se assim um mestre na sequella Iesu. De imediato despertou o fascínio de muitas pessoas e atraiu muitos discípulos e discípulas, entre as quais, Santa Clara. Clara e suas Irmãs, a exemplo de Francisco, também querem chegar ao cimo da montanha da perfeição do amor. A propósito subscrevemos parte do VII capítulo (Do perfeito amor de Deus) de um interessantíssimo opúsculo que Boaventura escreveu à abadessa das Irmãs, do convento de Assis, sobre A perfeição da vida:
  “Não é possível excogitar um meio mais apto e mais fácil para mortificar os vícios, para progredir na graça, para atingir o auge de todas as virtudes do que a caridade. Por isso diz Próspero, no seu livro Sobre a vida Contemplativa: “A caridade é a vida das virtudes e a morte dos vícios”. Como a cera se derrete diante do fogo, assim os vícios perecem diante da caridade. Porque a caridade possui tanto poder que só ela fecha o inferno, só ela abre o céu, só ela dá a esperança da salvação, só ela nos torna dignos do amor de Deus. Tal poder possui a caridade que entre todas as virtudes só ela é chamada propriamente virtude. Quem a possui é rico, tem abundância, é feliz. [...] E diz Santo Agostinho: “Se a virtude conduz a uma vida bem-aventurada, eu quisera afirmar em absoluto que nada é propriamente virtude senão o sumo amor de Deus”. Sendo, por conseguinte, o amor de Deus uma virtude tão elevada, cumpre insistir em alcançá-lo acima de todas as demais virtudes; porém, não um amor qualquer, mas só aquele com que Deus é amado sobre todas as coisas e o próximo por amor de Deus.
O modo de amar a teu Criador ensina-o o teu esposo no evangelho: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma e de todo o teu espírito. Repara bem, caríssima serva de Jesus Cristo, que amor o teu dileto esposo exige de ti. Quer o teu amado que ao seu amor dediques todo o teu coração, toda a tua alma, todo o teu espírito, de sorte que absolutamente ninguém em todo o teu coração, em toda a tua alma, em todo o teu espírito, tenha parte com ele. Que, pois, fará para amares o Senhor teu Deus realmente de todo o coração? Que quer dizer: de todo o coração? Vê como São João Crisóstomo ensina: “Amar a Deus de todo o coração significa não estar o teu coração inclinado a nenhuma outra coisa mais do que ao amor de Deus; não te comprazeres nas coisas desse mundo mais do que em Deus, nem nas honras, nem mesmo nos pais. Se, todavia, o teu coração se ocupar em alguma destas coisas, já não o amas de todo o coração”. Peço-te, serva de Cristo, não te iludas. Fica sabendo que, se amas alguma coisa, e não a amas em Deus e por Deus, já não o amas de todo o coração. Por isso diz Santo Agostinho: “Senhor, menos te ama quem ama alguma coisa contigo”. Se amas alguma coisa que não te faz progredir no amor de Deus, não o amas de todo coração. E se, por amor de alguma coisa, negligencias aquilo que deves a Cristo, já não o amas de todo o coração. Ama, pois, o Senhor teu Deus de todo o coração.
Não somente de todo o coração, mas também de toda a alma devemos amar a Jesus Cristo, nosso Deus e Senhor. Que significa: de toda a alma? Vai dizê-lo Santo Agostinho: “Amar a Deus de toda a alma é amá-lo com toda a vontade, sem restrições”. Amarás, certamente, de toda a alma, se sem contradição e de boa vontade fizeres não o que tu queres, nem o que aconselha o mundo, nem o que te inspira a carne, mas aquilo que reconheceres como sendo a vontade de Deus. Amarás, de fato, a Deus de toda a tua alma quando por amor de Jesus Cristo entregares de boa vontade tua vida à morte, sendo necessário. Se nisto, porém, faltares, já não amas de toda a alma. Ama, pois, ao Senhor teu Deus de toda a tua alma, isto é, faze a tua vontade sempre em conformidade com a vontade divina.
Entretanto, não só de todo o coração, não só de toda a alma, deves amar o teu esposo, Jesus Cristo. Ama-o também de todo o teu espírito. Que quer dizer: de todo o teu espírito? Di-lo novamente Santo Agostinho: “Amar a Deus de todo o espírito, é amá-lo com toda a memória, sem esquecimento”. (in: Obras Escolhidas. Porto Alegre: EST, 1983, p. 433-435).


UMA RELÍQUIA VIVA
DESCIA DA MONTANHA
Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM

 Desde a infância muitos de nós fomos aprendendo a gostar desse Francisco. Francisco das coisas pequenas, simples,  irmão do sol, das estrelas, da água, do leproso e de frei Leão, Francisco, cheio de carinho para com o Menino das Palhas e o Jesus bondoso e pobre que morre na cruz, esse Jesus que é o amor que precisa ser amado.

São Boaventura escreve: “Francisco, servo verdadeiramente fiel e ministro de Cristo, dois anos antes de devolver o espírito ao céu, como tivesse começado num lugar alto, à parte que se chama Monte Alverne e, um jejum quaresmal em honra do Arcanjo São Miguel, inundado mais profusamente pela suavidade da contemplação do alto e abrasado pela chama mais ardente dos desejos celestes, começou a sentir mais copiosamente os dons da ação do alto. Então, enquanto se elevava a Deus pelos seráficos ardores e o afeto se transformava em compassiva ternura para com aquele que por caridade excessiva quis ser crucificado, numa manhã, pela festa da Exaltação da Santa Cruz, rezando na parte lateral do monte, ele viu como que a figura de um Serafim que tinha seis asas tão fúlgidas, tão inflamadas a descer da sublimidade dos céus, o qual chegando com um vôo rapidíssimo num  lugar próximo ao homem de Deus, apareceu não somente alado, mas também crucificado, tendo as mãos e os pés estendidos, e pregados à cruz e as asas de modo tão maravilhoso dispostas de uma e outra parte que elevava duas sobre a cabeça, estendia duas para voar e com as outras duas velava o corpo, envolvendo-o todo (...). Depois de um certo colóquio secreto e familiar, ao desaparecer, a visão inflamou-lhe interiormente o espírito com ardor seráfico e marcou-lhe exteriormente a carne com a imagem do Crucificado, como se ao poder prévio de derreter o fogo seguisse uma impressão do selo” ( Legenda Menor – Os sagrados estigmas, n.1).
Dois anos antes de morrer, Francisco vai ao Monte Alverne. O santo vinha do Oriente, cansado, doente, vendo que, talvez seus irmãos, numerosos, estavam perdendo o ardor dos começos. Francisco, sem amargura, sente vontade de tomar certa distância dos fatos e dos acontecimentos.  O Santo se dava conta que estava no final de sua caminhada. Tinha dores em todo o corpo. Estava tomado por estas febres loucas e enxergava mal. Não podia mais suportar a luminosidade do  Irmão Sol. Era o tempo da festa da Exaltação da Santa Cruz. Quer fazer a quaresma de São Miguel no silêncio,  na meditação, ao lado de seu Frei Leão.  Quer estar mais perto de seu Senhor.

Toda sua vida fora busca de Cristo. Um dia ele teria formulado uma oração no seguinte teor: “Senhor, gostaria de ser digno de receber duas graças de vossa parte: experimentar em meu coração o amor que tiveste para com os homens e sentir a dor de tua acerbíssima paixão”. Esta súplica foi sento atendida pelo Senhor ao longo do tempo da vida de seu servo Francisco.  Durante anos e anos, depois de sua conversão, ele sempre buscar entrar na intimidade do Senhor Jesus na grutas, nos caminhos, contemplando o rosto dos leprosos. Aos poucos esse Francesco foi “tendo os mesmos sentimentos de Cristo Jesus”. Foi se abrasando no amor de Cristo. Cristo é o Vivo que queima e arde. Estamos diante da mística. Do amado que seduz a amada. Francisco e Cristo se tornam uma unidade. Há uma identificação mística. Francisco continua Francisco e Cristo continua Cristo. Nasce no coração do assisiense o desejo de viver também as dores e os sofrimentos de Cristo.
Eloi Leclerc tenta descrever esse momento: “... a alma de Francisco se rasgava e sentimentos contraditórios se debatiam dentro dele. A inefável beleza do serafim e seu olhar benevolente e cheio de graça o fascinavam e  o enchiam de alegria. Ao mesmo tempo, no entanto, o sofrimento do crucificado o aterrorizava. Perguntava-se, então: Como um espírito glorioso, imortal e tão belo podia sofrer a mais cruel agonia?  Não sabia o que pensar. A agonia estava junto com o êxtase. A Paixão e a Glória, associadas de maneira estranha,  pareciam cair sobre ele como um pássaro de rapina” ( in Francisco de Assis. O retorno ao Evangelho,  p. 108).
Francisco não é mais dono de si. Aos poucos, ao longo dos anos da vida, ele foi se despedindo de si, se despojando, esvaziando-se de si mesmo e no espaço do vazio veio o êxtase. O amado ganha a força do amor do Amante. Quem puder compreender, que compreenda.  Talvez esse Francisco pudesse dizer com Paulo:  Não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim!
Paul Claudel, tentando penetrar no Francisco que desce do monte, escreve: “Francisco  tinha dado sua alma de tal forma que nem mesmo seu corpo conserva mais. Quando se lhe pede uma explicação, nada tem a nos dizer. Ele é propriedade de alguém que não explica, mas plenifica. É todo inteiro doação, como um esposo ou um recém-nascido. Caminha ao olhar de todos os homens como alguém que está inebriado, como um esposo que geme e que sorri, cambaleante e ferido de uma glória da qual ele é o inexplicável consorte.  Quem desce trôpego do Alverne e mostra chaga e cicatriz secretamente a Clara é Jesus Cristo com Francisco, fazendo uma única realidade viva, sofredora e redentora”  (cf. E.Leclerc, op. cit. p. 109).
A partir desse momento Francisco tem o selo do Amado gravado em seu coração e em sua carne. Agora era uma relíquia viva descendo a montanha.  Nós, filhos de Francisco  das chagas e das transfigurações, nos recolhemos no silêncio e tentamos pedir a Deus que pela intercessão do Francisco das Chagas nos leva ao Cristo iluminado, transfigurado e ressuscitado.

Francisco da minha vida

Francisco,
pequeno e grande Francisco,
tu continuas vivo entre nós.

Tu és o meu irmão, meu irmão mais velho,
meu irmão modelo,meu irmão da roupa marrom,
das chagas douradas na mão
nos pés e no coração,
apaixonado pelo Senhor Jesus.

Gosto de te contemplar
erguendo os braços ébrio de amor,
cantando os louvores do Altíssimo, Onipotente
e grande Senhor!
Acompanho-te pelas ruas de Assis
com o irmão sol que te aquece  o  rosto,
pegando nas mãos a irmãzinha água
tão casta e tão transparente,
pisando na terra mãe
que produz variedade de flores e frutos.
Gosto de ver teu olhar acompanhar os irmãos,
os irmãos leprosos que chamavas de irmãos cristãos,
olhando os irmãos que te seguem,
todos eles que são filhos do Altíssimo.
Espreito-te ao jogares tuas roupas
nas mãos de teu pai e a proclamares solenemente
que o teu Pai está nos céus.
Aplaudo-te quando dizes
que os teus seguidores serão menores
e nunca hão de se alegrar,  a não ser com
o último de todos os lugares.
Vejo-te percorrendo as ruas e ruelas
da meiga Assis dizendo a todos que o Amor
não é amado.
Aprecio a tua coragem de partir sem segurança,
sem sacola e sem dinheiro
para dizer a todos os homens
que chegou o Reino novo
do Filho de Virgem Maria.
Recolho-me num cantinho
e vejo que sais da contemplação
com as chagas de Cristo Jesus
nas mãos, nos pés e no coração.
Morro e renasço contigo
quando  cantas o salmo que fala que é preciso
que Deus nos tire desta prisão.
Francisco de ontem e de sempre,
Francisco da roupa marrom,
Francisco da minha vida!


UMA MONTANHA TODA RESPLENDENTE...
Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM

De agora em diante que ninguém me moleste:
trago em meu corpo as chagas de Jesus Cristo ( Gálatas 6,17)
1. Quando eu era criança, lá pelos idos de 1945, com meus 7 anos, folheando um livro de orações de minha mãe, que se chamava, se não me engano Maná, encontrei um santinho que me intrigava. Havia um homem, ajoelhado, vestido de marrom, como os freis que celebravam na Capela de Nossa Senhora das Vitórias na Vila dos Sargentos, em Petrópolis. Ele olhava para o alto, na direção de um anjo diferente. Este, por sua vez, tinha o rosto de homem. Parecia-me, nos meus sete anos, um rosto de Cristo. E esse Cristo diferente, tinha muitas asas. Aquilo tudo me parecia muito estranho e, ao mesmo tempo, eu me sentia misteriosamente atraído por aquele santinho. Muitas vezes eu voltava a procurá-lo no livro de minha mãe. E ficava agoniado enquanto não o achava. Saíam raios do corpo do homem Cristo, anjo, que atingiam as mãos, os pés e o lado desse outro homem de marrom, ajoelhado e com os olhos arregalados... Mais tarde quando cresci, quando não tinha mais o jeito do menino de 7 anos, soube que se tratava da estigmatização de Francisco de Assis. Isso compreendi bem mais tarde, bem mais tarde mesmo. E o dia 17 de setembro, passou a ter um significado grande para mim. Achava que esse dia deveria ser feriado religioso. Afinal, um homem com as chagas de Jesus... Um dia desses vi um título de uma autora italiana que abordava a questão da invenção das chagas de Francisco por parte de Frei Elias... Compreendo que se façam estudos críticos. Mas...Bem, aqui não é o espaço para uma discussão sobre esse assunto. Os interessados procurem o livro de Chiara Frugoni, Francesco e l’invenzione delle stimmate, Torino, Eunaudi, 1993). Um confrade, cujo nome não declina, me disse que autora é tendenciosa (sic). Quando penso na comemoração das chagas sempre vem à minha mente as palavras da epístola aos Gálatas: “De agora em diante que ninguém me moleste: trago em meu corpo as chagas de Jesus Cristo”.
2. As circunstâncias e a bondade do Senhor me permitiram, agora, aos setenta anos, voltar uma vez mais ao Alverne. Tive a graça de passar uma semana nas alturas alvernianas...nessa montanha toda radiosa e esplendorosa. Saindo de Roma cheguei a La Verna pelas 14horas do sábado, 18 de outubro, festa de São Lucas. O trem chegou a Arezzo, uma bela cidadezinha do vale casentino ou tiberino, e dali tomei um outro pequeno trem até Bibbiena e depois um pullman até Chiusi de La Verna, lá onde estava o castelo do Conde Orlando. Uma irmã franciscana indiana teve a caridade de providenciar para mim uma carona até as dependências do convento dos frades da Província Toscana dos Sagrados Estigmas do Pai Seráfico. Percorri muito feliz os três quilômetros que separavam a casa as irmãs da entrada do convento. Outono. Folhas pela estrada. Nas árvores, todas as cores. Amarelo vivo, amarelo esmaecido, vermelho, marrom e aqueles pinheiros cujas folhas não fenecem... Um sol das três da tarde e uma sensação de beleza, de delicadeza. Sim, La Verna é marcado pela beleza e doçura, mas também pela rudeza. Aquelas pedras cinza claro que estavam ali, com profundos cortes, fissuradas. Conta-se que essas rachaduras se deram no momento da morte de Cristo. Uns poucos pássaros voavam. Ainda não fazia frio naqueles dias de outubro. Mas o ar fresco de fundo anunciava o inverno.
3. Não preciso e nem quero evocar todos os pormenores das Fontes a respeito do assunto. Sei, sei perfeitamente que os queridos biógrafos embelezaram as coisas segundo os ditames da hagiografia do tempo...Francisco, os frades, Leão, o falcão, as celas do Pai Seráfico, as tentações do diabo. Sabemos tudo isso. Por isso, quando se vai a La Verna é preciso tirar as sandálias dos pés. E deixar que o mistério da montanha reluzente, transparente nos envolva. Será preciso sentar-se nas estalas pequenas da Igreja dos Estigmas. Escutar as batidas do coração, nosso de Francisco e dos oitocentos anos da aprovação de nosso estilo de vida, da forma de vida segundo o Evangelho.
4. La Verna abriga uma comunidade de uns vinte frades. São os guardiães do local onde Deus quis manifestar-se, ainda uma vez, a Francisco, agora de maneira definitiva. Francisco já tinha tido outras revelações: que ele devia viver segundo o evangelho, respeitar as igrejas, a eucaristia, os sacerdotes, a palavra, a Igreja, os bispos, o Senhor Papa. Agora acontecia a grande manifestação. O esposo tomava conta definitivamente do amado. Esse Francisco que tinha ido pelo mundo afora chorando e dizendo que o amor precisava ser amado agora, ali, na rudeza do La Verna, era beijado definitivamente pelo Amante. Não perguntem muita coisa a Francisco. La Verna não se explica. É o desfecho maravilhoso de uma existência que foi se descentrando e se abismando na força da simplicidade pobre de um Deus que anda loucamente procurando esses seres que se chamam homens e mulheres... Sim, Francisco sentia no peito o amor do Senhor Jesus e, em seus membros, a dor da Palavra de Deus, do Verbo que havia tomado carne no seio da pobrezinha da Virgem. La Verna, a céu aberto, nas imediações da Festa da Santa Cruz, se tornava o grande espaço do enlace do pobrezinho que havia se identificado com Cristo, e se revestido até o fim das vestes da singeleza pobre. As chagas nas mãos, nos pés e no coração...Não, certamente elas não foram inventadas por Frei Elias... “De agora em diante que ninguém moleste: trago nos meus membros as chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo”.
5. Sim, ele já as trazia há muito tempo...porque sofria ao ver que o amor não era amado, porque sentia dor em constatar que muitos miseráveis eram abandonados, sofria com as dores de seu corpo, de seus olhos, de seu estômago, mas sobretudo porque se dava conta que ele mesmo estava sendo abandonado pelos seus irmãos...”Escreve, frei Leão, que a verdadeira, a perfeita alegria não consiste nas grandes pregações, nas conversões em massa, no alarido que eventualmente os frades podem fazer, nem na solenidade de suas preleções na universidade de Paris, ou de não sei onde, mas em aceitar esse negativo da vida, sem reclamar, carregando a cruz de Cristo, essa dor doída de sentir que não se conta mais... Quando chegarmos, frei Leão, à Porciúncula, se formos mal recebidos, não importa. Ali mostraremos ter compreendido o sentido verdadeiro da alegria que nasce da cruz. E agora, por favor,não me molestem. Trago nos meus membros as chagas do Senhor”.
6. O tempo passado em La Verna foi diferente, na sua cotidianidade. Todos os dias, às 7h, havia o Oficio das Leituras, recitado. O silêncio era total fora e dentro da Basílica grande. Os frades chegavam de hábito, noviços, mestre, guardião, frades do eremitério, vice mestre e até um frade de Petrópolis. Os salmos, as leituras... Parecia-me estranho ouvir o pedido de Ester ao rei para poupar seu povo ali, naquele quadro. A Palavra e as palavras chegavam ao fundo do ser...geravam vida...Depois vinham as Laudes, quase sempre cantadas, com melodias bonitas, acompanhamento de órgão, por vezes, até incenso. Chamava minha atenção o ambão das leituras. A peça moderna recebia uma iluminação direta muito bonita. Mateo, o noviço, lia italianamente todas as coisas de seu livro, com sobrepeliz, cabelo curto, pulôver por sobre o hábito...
7. Todos os dias, às 15h, depois da Noa, cantada e recitada, não nos bancos da igreja grande, mas num coro de estalas por detrás do altar datadas do século XVII. Depois dos salmos a procissão até o local dos estigmas, os hinos, a leitura de um texto das Fontes relativo aos estigmas. Era o momento cotidiano de lembrar os eventos de tempos passados e recordar os estigmatizados de nossos tempos, em nossas casas, nas paróquias, na vida... E ali, naquele espaço, sempre me lembrava de Leão: os Louvores do Deus Altíssimo, o carinho por Francisco, a ternura do Pai por ele, e a bênção, essa benção de São Francisco que faz tanto bem. Os guardiães deveriam abençoar mais vezes os irmãos com estas palavras tão lindas do Livro dos Números...
8. Voltávamos a nos encontrar na Igreja grande para as Vésperas, às 18,30 e depois para meia hora de meditação. Gostava muito de me assentar no quarto banco tendo perto de mim o trabalho de Andrea della Robbia que representa o anúncio do Anjo a Maria. Depois vinha a janta.... vocês sabem.. com massa, carne, queijo, vinho, uvas dulcíssimas, torta com as mesmas, pão italiano, muito pão italiano...
9. Verdade, meus amigos que, muitos e muitos turistas ali se reúnem com suas máquinas de fotografia...sempre fotografias...Muitos não se apercebem do mistério... Os frades fazem o que podem...mas eles precisam ser gentis, cativar as pessoas... e nem sempre esse festival de fotos combina com o quadro do Alverne.
10. Gostaria ainda de dizer duas palavras. Experimentava muita alegria e mesmo emoção quando me dirigia ao Precipício. Dizem que Francisco foi tentado ali. Mas a paisagem é esplendorosa. De lá se avistava tudo. Bem no meio está Bibbiena, uma cidadezinha charmosa. Um dia ela estava coberta pela nevoa e, nas alturas da Montanha, havia sol. Sabem... havia um tipo de gente que perturbava aquele majestático silêncio. Refiro-me aos motoqueiros que, lá embaixo, em Chuisi de La Verna, corriam feito doidos e sempre barulhentamente... Penso que estive nesse espaço do Precipio todos os dias do retiro e mesmo mais de uma vez. Aliás estive em Bibbiena com um frade no hospital regional. Ao cortar a unha do anular da mão esquerda avancei demais e deu uma infecção. Foi preciso ver um médico. Tudo saiu bem, burocraticamente bem, ser versar uma fração de euro. Assim consta de minha folha: “Il paziente presenta a livello de la falange distale del 4 dito de la mano dx una flogosi locale che interessa il dito a tuto spessore”. Por fim: “Si consiglano impacchi com acqua calda e terapia antibiotica” Depois tive que buscar autorização e receita de uma doutora para a questão do antibiótico. E esta era uma sudanesa que tinha sido adotada por uma família italiana ainda criança, se formara em medicina e se casara com um cidadão toscano.
11. A segunda palavra é a respeito da Igreja de Nossa Senhora dos Anjos que teria existido, na sua forma mais primitiva, no tempo de Francisco. Há um retábulo de Andrea della Robbia magnífico representando a Assunção de Maria, cercada de anjos por todos os lados, anjos de todos os jeitos, uns sorridentes, outros descansando a mão no queixo e nas bochechas. Era bom ficar ali uns quinze minutos olhando aqueles anjos brancos num fundo azul...e a delicadeza de Maria. Há uma forte presença de Nossa Senhora nas terras alverianas...
12. “De agora em diante que ninguém me incomode: trago nos meus membros a paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo”. Nesse tempo de preparação das comemorações dos oitocentos anos da aprovação da proto-regra é bom trazer à mente tudo aquilo que significa o Alverne, síntese de uma vida, da vida de Francisco. Depois, Francisco desceu a Montanha resplandecente. Deve ter olhado para trás algumas vezes lembrando-se das núpcias ali realizadas e vividas. Quem descia trôpego era o Francesco dos sonhos das coisas grandes, da vontade de se casar com a mulher mais bonita da face da terra, o Francesco que rodopiava e dançava diante de Deus como se fosse um bailarino, o Francisco que jogava esmolas para os pobres, o Francesco que comia uvas com o irmão doente, o nosso irmão Francesco....que compreendeu como nunca que o amor precisava ser amado. Será que as teorias a respeito da evangelização não esquecem que antes tudo está esse desejo de que o amor seja amado? Ou será que estou enganado?
13. No alto do Alverne pensei em muitas pessoas. Pensei de modo especial em Frei Mateus Hoepers a quem devo a alegria de me ter tornado franciscano. Ele, com seu jeito meio dele, sua voz enorme, seu corpo imenso parecia uma criança quando falava de Francisco. Pensei nele. E agradeci ter entrado na Ordem apesar de meus e de minhas limitações. Pensei também nos frades estudantes de Petrópolis, de modo especial, no grupo que mora no Sagrado. Alguns deles são seres excepcionais. Que Deus os conserve e que eles possam renovar a vida franciscana de nossa Província. Muitos deles são melhores, enormemente melhores do que nós fomos, nos que vamos comemorar em 19 de dezembro de 2008 os cinquenta anos de ingresso no Noviciado.
14. Quase no final. Não posso e nâo quero deixar de dizer que, no alto de uma outra montanha, no Morro de Fátima, em Petrópolis, no dia 7 de junho de 1957, tomei a decisão de ser franciscano. Frei Abílio um dia vai me deixar celebrar lá.
15. Gostaria que minha irmã vasculhasse todas as coisas do sótão de sua casa para ver se descobre onde está aquele santinho. Nunca mais, nos meus 70 anos de vida, encontrei um santinho como aquele.
Terminam aqui as considerações pouco costuradas a respeito de uma montanha resplendente...

 Fonte: http://www.franciscanos.org.br

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